O relógio marca meia-noite menos vinte e o
ambiente no Queer, cujas portas se abriram às onze, está ainda “morno”. O disc-jockey Miguel Kano, que entrou ao
serviço mais cedo do que habitualmente, vai debitando os sons enquanto o bar se
vai compondo, à medida que vão chegando pessoas, na sua maioria homens jovens.
No bar principal, o fotógrafo Valero sorve
uns goles da sua cerveja e espia os fantasiados que, entretanto, vão surgindo.
Após inspeccionar a máquina fotográfica, pousa-a no balcão e pede a Jaime que
lhe guarde a pesada mochila na copa enquanto vai dar uma volta pelas outras
“capelinhas”. É a noite de Halloween, tem de fazer a sua reportagem fotográfica
percorrendo todos os estabelecimentos de diversão nocturna daquele bairro na
expectativa de captar as melhores imagens.
– Detesto andar carregado de tralha quando
trabalho – justifica-se, arqueando as sobrancelhas – e não dá jeito nenhum
pedir constantemente, quer num balcão quer aos porteiros, que me guardem a
mochila. E logo nesta noite, que as casas devem estar ao rubro!
– Vai tranquilo, rapaz. Faz um bom trabalho e
não te preocupes com a mochila. Aqui fica segura – sussurra Jaime, retirando-a
do balcão. – Mas tem cuidado para não seres assaltado! Esconde a máquina dentro
do casaco, não andes a exibi-la na rua.
– Vira essa boca para lá! Já bastam as que me
roubaram! Mas hoje não há grande perigo, anda imensa gente na rua e os larápios
não arriscam.
– Vais fazer uma reportagem e tanto! Hoje
tens resmas de manas fantasiadas para fotografar. Alguma edição especial
sobre o Halloween?
– O portfólio do costume, como nos outros
anos – responde o fotógrafo, com um certo desdém. – Estou a pensar seriamente
numa exposição. Há anos que acompanho o Halloween e o meu arquivo acumula
milhares de imagens inéditas. Seleccionando as melhores e mais algumas que faça
hoje, quiçá.
– Outra cerveja? – sibila o barman, quando
ele termina de beber. – Oferta da casa.
– É pá, não posso exagerar. A noite é ainda
uma criança e espera-me um longo trabalho pela frente. Mas aceito. – Mal
proferira estas palavras e Jaime já lhe substituía a garrafa vazia por outra
cheia. – És um amor. Thanks.
– Para quando será essa exposição? E onde?
– Ainda não agendei data nem local, mas isso
resolve-se, é fácil.
– As bichas
vão ficar malucas ao verem as suas fotos expostas. Oh, se vão! Vaidosas como
são...
– Nem te conto, Jaime! Só de lembrar que há
meia dúzia de anos todas fugiam da objectiva e dos flashes... agora não me
largam a pila. Nem consigo respirar!
– A exposição será baseada apenas em imagens,
como as reportagens fotográficas e os portfólios que publicas, ou tens algo
mais concreto em mente?
– Estudei a história do Halloween, é deveras
curiosa. A maioria das pessoas pensa que é simplesmente mais um evento
concebido e exportado pelos americanos, como o Gay Pride. Enganam-se! As
origens do Halloween são muito antigas, remontam à Antiguidade. Tem quase três
mil anos e uma relação particularmente curiosa com a Igreja Católica.
– Confesso a minha ignorância nessa matéria.
Sempre vi o Halloween como um Carnaval gay fora de época, mas com bruxas,
abóboras e vassouras.
– É conhecido como a Noite das Bruxas em
parte graças à Igreja Católica.
– Como assim? – Jaime mostra-se curioso e
Valero descreve a história do evento.
A noite de Halloween festeja-se de 31 de
Outubro para 1 de Novembro e foi sempre combatida pela Igreja Católica por ser
comemorada na véspera do Dia de Todos os Santos. A sua origem remonta às
tradições dos antigos povos celtas que habitaram a Gália e as ilhas da
Grã-Bretanha entre os anos 600 a.C. e 800 d.C. e situavam o Ano Novo no dia 1
de Novembro, durante as festividades do Samhain, evento do calendário celta que
celebrava o fim do Verão e o início do Ano Novo e, além disso, tinha como
objectivo dar culto aos mortos, continuando a ser comemorado paralelamente às
práticas cristãs, em particular na Irlanda católica, Escócia, Gales, Cornualha
e noutras regiões de cultura céltica das Ilhas Britânicas.
A invasão das Ilhas Britânicas pelos Romanos
mesclou a cultura latina com a celta e, em finais do Século II, com a
evangelização desses territórios, a religião dos Celtas, chamada druidismo,
tinha desaparecido na maioria das comunidades. Pouco se sabe sobre essa
religião, mas sabe-se que o Festival do Samhain ocorria entre 30 de Outubro e 2
de Novembro, a meio caminho entre o equinócio de Verão e o solstício de
Inverno, e a “festa dos mortos” era uma das suas datas mais importantes, sendo
celebrada com rituais presididos pelos sacerdotes druidas que actuavam como
médiuns entre as pessoas e os seus antepassados. Dizia-se também que os
espíritos dos mortos voltavam nessa data para visitar os seus antigos lares e guiar
os seus familiares rumo ao outro mundo.
A relação da comemoração desta data com as
bruxas terá iniciado na Idade Média no seguimento das perseguições incitadas
por líderes católicos, sendo conduzidos julgamentos pela Inquisição (esta
perseguia os praticantes de rituais pagãos como os celtas), com o intuito de
condenar quem fosse considerado curandeiro ou pagão. O alvo de tal suspeita era
taxado de bruxo, ou bruxa, com elevado sentido negativo e pejorativo, devendo
ser julgado pelo Tribunal do Santo Ofício e, na maioria das vezes, queimado na
fogueira nos chamados autos-de-fé. Essa designação perpetuou-se e, no Século
XIX, esta comemoração de origem pagã foi levada por emigrantes irlandeses (povo
de etnia e cultura celta) até aos EUA, onde a tolerância religiosa era maior e
a continuidade de festejos pagãos como o Halloween – termo inglês, inicialmente
chamado de All Hallow’s Even (noite que antecede o dia de Todos os Santos) e
posteriormente reduzido para Halloween – não tinha barreiras culturais ou qualquer
constrangimento. E foi aí, em terras norte-americanas, que essa noite passou a
ser conhecida como a Noite das Bruxas.
Presentemente, a festa do Halloween pouco tem
a ver com as suas origens: só restou uma alusão aos mortos, mas com um carácter
distinto. Além disso, foi sendo incorporada uma série de elementos estranhos às
festas de Finados e de Todos os Santos. Na celebração actual nota-se a presença
de muitos desses elementos: abóboras em forma de caras assustadoras (sem polpa
e com velas acesas), bruxas a voarem por cima dos alpendres das casas e
crianças vestidas de formas bizarras a andarem de casa em casa, à noite, a
pedir doces, frutas ou prendas. As fantasias, enfeites e outros itens usados
neste evento estão repletos de bruxas, vampiros, gatos pretos, fantasmas,
esqueletos, espíritos, feiticeiros, espantalhos, múmias, mortos-vivos e toda a
espécie de monstros horríveis, com decorações de trevas e de medo fora e dentro
das casas, que às vezes chegam a ter conotações verdadeiramente satânicas.
– Nos
dias de hoje o Halloween é universal, comemora-se em todo o mundo – prossegue
Valero, finalizando a narrativa. – Na noite gay de Lisboa é considerado um
segundo Carnaval e começou a festejado em 1992, no mais antigo bar gay da Rua
de São Marçal, no Príncipe Real. Há tempos, um dos seus proprietários afirmou
mesmo numa entrevista ao jornal Púbico: «O nosso foi o primeiro
bar gay a fazer o Halloween, em 1992. Se alguém o fazia antes, não se falava.
Nos anos seguintes surgiram mais bares a festejá-lo porque é divertido, é mais
uma noite temática, é um Carnaval adicional ao que já existe. A ideia pegou e
agora todas as casas o fazem». – Vendo os ponteiros do relógio a marcarem
meia-noite e dez, termina a cerveja de um gole e despede-se. – Bem rapaz, está
na hora, tenho de me pirar. Volto lá pelas duas, duas e meia. Até já!
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Excerto/Introdução do meu conto «Os Amigos de Malachi»
Incluído na antologia carnavalesca «Ninguém Leva a Mal»
Da Colecção Sui Generis
Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris
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