Ao ouvir as palavras do irmão sobre a reacção
de Américo, quando o senhor Jacinto lhe insinuara a possibilidade de um dia a
sua irmã mais nova se sujeitar ao mesmo perigo que a filha do ferreiro sofreu,
Henrique fica mais assustado do que já estava. Não que ele tenha medo do irmão
da namorada, mas teme o senhor Ramiro Pereira, seu futuro sogro.
– Que vou eu fazer à minha vida, Leonardo?
– Fizeste munto mal em deitar-te com a Irene.
Agora, tens de casar depressa com ela, antes que a barriga apareça. Senão... se
o pai dela sabe nem te deixa casar. Mata-te logo! A coitada da Irene ainda fica
viúva antes do tempo, e c’um filho na barriga. Queres isso?
– Tu sabes que eu sempre quis, desde miúdo,
casar com a Irene. Mas assim, às pressas? Sem nenhum dinheiro comigo? Todo o povo
vai desconfiar!
– Num tens outro remédio. Rique, faz das
tripas coração, mas casa-te rápido. Fala com o tio Ramiro antes que ele
descubra.
– Ó Leonardo, tu estás doido ou quê? Daqui a
nada vou para a tropa e só volto daqui a dois ou três anos. Como queres que lhe
fale em casório?
– Tens alguma ideia melhor? Se num falas com
o tio Ramiro, pretendes fazer o quê? Partir para o Ultramar e deixar a Irene
desonrada?
– Claro que não!
– Então, num tens escolha.
– Oh, sorte malvada! Para que é que fui dormir
com a Irene? Está certo que me soube bem, mas ela tinha de ficar de barriga
assim tão cedo, antes de ter a minha vida arranjada? Puta de sina! Como se não
bastasse sermos pobres, ela ainda tem o raio de uma família brava como as
cobras.
– Preocupa-te só com o tio Ramiro, que eu
trato do Mérico. Mais logo, nós vamos ao baile de Chã das Naves e falo-lhe de
vós.
– Vê lá o que vais fazer, ó Leonardo!
– É melhor contar-lhe no meio do baile, como
quem num quer a coisa. Assim, ele num fica tão bravo. Se ficar, num há-de
querer descarregar a raiva no meio de todo o mundo. O Mérico num vai querer que
o povo saiba que a irmã dele está de esperanças, pois não?
– Ó Leonardo, num me compliques mais a vida,
por favor!
– Só quero ajudar. Rique, tu és meu mano e eu
vou-te valer, quer tu queiras quer não. Se conseguir controlar a raiva do
Mérico, podes crer que já faço munto. Mas fala ao tio Ramiro! Diz-lhe que tu e
a Irene querem deixar a vossa vida acertada, antes de ires embora. Dois ou três
anos em África é munto tempo. Diz-lhe que tens medo de que a Irene num espere
por ti... sempre lhe pode aparecer outro rapaz e ela casar com ele, num é?
Diz-lhe mesmo que tens medo de que lhe possa acontecer alguma desgraça, como
fizeram à Donzília do ferreiro. O povo, hoje, num fala doutra coisa. Pega nessa
desculpa e conversa com o pai da Irene!
– Num sei, Leonardo. É complicado dizer-lhe
que emprenhei a filha dele.
– Num digas isso! No ano que vem, o Mérico
parte também para o Ultramar. A Irene vai ficar sozinha, sem o irmão a
defendê-la da rapaziada. E ela é tão bonita! Contigo e o Mérico em África, num
hão-de faltar cães à sua volta. Mesmo que ela te queira guardar respeito, pode
haver algum malvado que abuse dela. Nunca se sabe, não é? Pois então faz o que eu
te digo, Rique! O tio Ramiro há-de entender que, se tu fores solteiro para
África, tens medo de que algum mal suceda à Irene.
– Mas ele vai desconfiar desta pressa toda! E
aí, o caldo entorna-se.
– Quando descobrir, já tens o casamento
marcado. A raiva num será tanta porque já estás a compor a coisa. Verás que o
tio Ramiro num há-de deixar ninguém saber que a filha vai casar de bucho cheio.
E na altura em que o povo perceber, se alguém perceber, vós já estareis
casados.
– Olha, acho melhor eu e a Irene falarmos com
o senhor padre. É isso, Leonardo! Peço ao senhor padre que nos case em segredo.
Fujo com ela e voltamos, já casados, daqui a uns dias.
– Nem penses numa asneira dessas!
– E porque não? Só quero arranjar uma saída.
– Rique, pela alma do nosso pai, tem calma!
Tudo há-de ajeitar-se.
– Ajeitar como, Leonardo?
Subitamente, Leonardo cala-se. Henrique
dirige o olhar para a porta da loja e depara com a irmã. A miúda olha de um
para o outro, como que incrédula, embasbacada.
– Que foi, Manuela? – pergunta Henrique,
ignorando por completo as palavras que acabara de proferir. – Que estás aí a
fazer?
– A mãe pediu... – balbucia a menina, mas mal
consegue falar.
– Diz, Nelinha – incentiva-a Leonardo. – O
que é que a mãe pediu?
– Cavacos. A fogueira está quase a apagar-se.
Num há lenha em casa.
– Já os levamos – afirma Henrique. – A mãe
quer mais alguma coisa?
– Não, Rique. O que é que tu... disseste ao
Leonardo?
– Nada de especial, Nelinha – responde
Leonardo, antecipando-se ao irmão. – O Rique só estava a brincar. Agora volta
para casa, volta. Diz à mãe que nós já vamos.
Manuela dá meia volta, vai à horta colher
folhas de couve e segue pelo carreiro. Os irmãos observam-na até a perderem de
vista. Questionam-se sobre o que ela teria escutado, e se terá entendido o que
eles diziam. Pelo sim pelo não, decidem concluir rapidamente as tarefas com as
vacas e retornar logo a casa, com os braços carregados de cavacos.
Manuela, ao entrar na cozinha, revela à mãe o
que ouvira. Todavia, as suas palavras são tão imprecisas que Dona Isabel não
acredita nela. Na verdade, com o falatório que corre em Tarapata sobre o
infortúnio de Donzília, a filha do ferreiro de Corga da Raposa “emprenhada pelo
namorado” e posteriormente “abusada por um bando de camaradas dele” no Monte da
Raposa, Dona Isabel julga que a filha se refere a essa rapariga e citou, por
lapso, o nome de Irene. Talvez porque Irene seja a namorada do irmão. Talvez
porque o ouvisse a falar também sobre Irene. Ainda assim, repreende-a por
“escutar mal aquilo que os outros dizem” e manda-a calar. Manuela fica amuada e
refugia-se no seu quarto, para não levar mais raspanetes.
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Excerto do meu conto «O Segredo de Leonardo»
Incluído na antologia luso-brasileira «Saloios & Caipiras»
Da Colecção Sui Generis
Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris
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