O tema principal dos habitantes de Tarapata
que naquele momento, após ter terminado a missa dominical, se reuniram na
taberna do senhor Ilídio antes de regressarem às suas casas para almoçar é o
caso de uma adolescente natural de Corga da Raposa que fora recentemente estuprada.
Corga da Raposa é uma aldeia vizinha que existe no sentido Norte de Tarapata,
num vale ocultado pela frondosa montanha conhecida por Monte da Raposa, que
separa ambas as povoações.
Leonardo Batista chega à porta da taberna e vê
o amigo Américo Pereira a falar com os outros aldeões, miúdos e graúdos, sobre
a triste sina daquela rapariga. Entra discretamente, directo ao balcão. Pede um
copo.
– Branco ou tinto? – pergunta o taberneiro.
– Cheio! – responde ele, indiferente à cor do
vinho.
O pessoal, ignorando a sua presença,
prossegue o falatório. Leonardo assimila imediatamente que a jovem em foco é
Donzília, a filha do ferreiro de Corga da Raposa, a mesma que, tempos atrás,
rejeitara Américo. Pelo visto, o namorado engravidara-a e na noite seguinte
após ter conhecimento desse facto, com o pretexto de a levar a um baile noutra
localidade, atraiu-a a um local ermo, no meio da serra, onde ela seria selvaticamente
violada. Nesse lugar, em pleno Monte da Raposa, já estava reunido um grupo de
comparsas, escondido na escuridão, atrás das giestas, com quem o malvado
ricaço, cujo objectivo era fugir à sua responsabilidade, marcara previamente
encontro. Todos os rapazes, entre os quais se contavam alguns já casados e com
filhos, abusaram sucessivamente da pobre rapariga, sem dó nem piedade. Desse
modo, aquele que a engravidara, Filipe Rodrigues, acreditava que não seria
responsabilizado pela paternidade da criança que gerara já que, mediante a
perspectiva que iria defender, ela tivera relações sexuais com vários machos e
não poderia apontar o dedo só a ele. Como poderia uma mulher que se deitara com
mais de dez homens acusar somente um de a ter engravidado? Qualquer um desses
indivíduos poderia ser o pai da criança!
Américo Pereira, que ainda se sentia
preterido, não é nada complacente nas suas palavras:
– Foi-lhe bem feito!
– Ó Mérico, num digas uma coisa dessas.
– Pois digo que foi bem feito e digo munto
mais! Quem a mandou trocar um rapaz pobre como eu, mas honesto, com honra, por
um ricalhaço da alta sociedade de Tarapata? Teve o que mereceu!
O seu sarcasmo não poderia ser mais corrosivo.
Alguém lhe recorda o velho ditado popular:
– Ó rapaz, num atires pedras ao teu vizinho
que o mesmo pode vir no teu caminho.
– Num seja parvo, tio Jacinto! Eu sou homem!
Desse mal num sofro!
– Pois és homem, meu rapaz, mas lembra-te de
que tens duas irmãs em casa. A Irene parece que está bem encaminhada, com o
rapaz mais velho da Isabel Batista... os Batistas são gente pobre, mas boa! Já
a tua irmãzita mais nova, quando for mais crescida, num está livre de uma
desgraça dessas.
– Ai de alguém que tente encostar um dedo
nalguma das minhas manas! – vocifera Américo, enrubescendo. – Se algum
filho-da-puta fizesse uma coisa dessas às minhas irmãs, podem crer que num se
ficava a rir como aquele ricalhaço. Eu tirava-o do mundo em três tempos!
Leonardo estremece violentamente ao ouvir
estas palavras e pensa no irmão. Acaba de beber o copo de vinho e interrompe o
amigo:
– Mérico, vamos mas é mudar de assunto que
essa conversa num cheira bem.
– Ó Leonardo, num vês que aqui o nosso
rapazinho ainda está despeitado – sussurra o taberneiro. – Levou uma bigodaça
do caneco e num grama o Filipe por lhe ter tirado a rapariga.
– Tio Ilídio, se a Donzília ficasse comigo
garanto-lhe que nunca acontecia nada disso – murmura Américo. – Quando lhe pedi
namoro, tinha ideias de casar com ela. Num era para já, que ainda sou novo, mas
daqui por uns dois ou três anos casava com ela, de certeza.
– Agora, nem daqui por dois nem daqui por
dez.
– Pois não, tio Jacinto. Eu num fico com o
refugo dos outros. Ela quis assim, agora que se amanhe!
O jovem Batista aproxima-se do amigo e
pede-lhe para sair à rua.
– Que queres, Leonardo?
– Fazes-me um favor? Compra-me um Kentucky. Mas num deixes ninguém
perceber que é para mim, senão... se a minha mãe sabe...
Américo ignora as moedas que o outro lhe
estende, entra de novo na taberna e dirige-se ao balcão de madeira gasta, de
onde retorna pouco depois. Entrega-lhe um maço de Ritz. Leonardo, esbugalhando os olhos, protesta:
– Ó Mérico, eu pedi Kentucky! Este tabaco é munto caro!
– Deixa lá, Leonardo. Aquela porcaria de
tabaco mata-ratos que costumas fumar num presta... nem filtro tem! Ofereço-te
este maço para variares e logo vamos dar uma volta, está bem?
– Há baile nalgum lado?
– Acho que sim. Deixa ver o edital.
Os editais, como os aldeões se referem aos
cartazes publicitários, são afixados na porta da taberna. Neste dia, há um;
anuncia uma festa noutra aldeia a meia dúzia de quilómetros de Tarapata.
– Olha, há festa em Chã das Naves.
– E vais lá, Mérico?
– Só vou se fores comigo.
– Num sei se posso. Se a minha mãe ou o Rique
me derem dinheiro...
– Hoje, o baile é de graça. É festa popular.
E se num tens dinheiro pago-te duas cervejolas.
– Está bem. Vamos a que horas?
– Assim que estiver pronto, passo com a mota
à tua porta.
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Excerto do meu conto «O Segredo de Leonardo»
Incluído na antologia luso-brasileira «Saloios & Caipiras»
Da Colecção Sui Generis
Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris
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