07 junho, 2017

EXCERTO DO CONTO «O SEGREDO DE LEONARDO» PUBLICADO NA ANTOLOGIA «SALOIOS & CAIPIRAS»


O tema principal dos habitantes de Tarapata que naquele momento, após ter terminado a missa dominical, se reuniram na taberna do senhor Ilídio antes de regressarem às suas casas para almoçar é o caso de uma adolescente natural de Corga da Raposa que fora recentemente estuprada. Corga da Raposa é uma aldeia vizinha que existe no sentido Norte de Tarapata, num vale ocultado pela frondosa montanha conhecida por Monte da Raposa, que separa ambas as povoações.
Leonardo Batista chega à porta da taberna e vê o amigo Américo Pereira a falar com os outros aldeões, miúdos e graúdos, sobre a triste sina daquela rapariga. Entra discretamente, directo ao balcão. Pede um copo.
– Branco ou tinto? – pergunta o taberneiro.
– Cheio! – responde ele, indiferente à cor do vinho.
O pessoal, ignorando a sua presença, prossegue o falatório. Leonardo assimila imediatamente que a jovem em foco é Donzília, a filha do ferreiro de Corga da Raposa, a mesma que, tempos atrás, rejeitara Américo. Pelo visto, o namorado engravidara-a e na noite seguinte após ter conhecimento desse facto, com o pretexto de a levar a um baile noutra localidade, atraiu-a a um local ermo, no meio da serra, onde ela seria selvaticamente violada. Nesse lugar, em pleno Monte da Raposa, já estava reunido um grupo de comparsas, escondido na escuridão, atrás das giestas, com quem o malvado ricaço, cujo objectivo era fugir à sua responsabilidade, marcara previamente encontro. Todos os rapazes, entre os quais se contavam alguns já casados e com filhos, abusaram sucessivamente da pobre rapariga, sem dó nem piedade. Desse modo, aquele que a engravidara, Filipe Rodrigues, acreditava que não seria responsabilizado pela paternidade da criança que gerara já que, mediante a perspectiva que iria defender, ela tivera relações sexuais com vários machos e não poderia apontar o dedo só a ele. Como poderia uma mulher que se deitara com mais de dez homens acusar somente um de a ter engravidado? Qualquer um desses indivíduos poderia ser o pai da criança!
Américo Pereira, que ainda se sentia preterido, não é nada complacente nas suas palavras:
– Foi-lhe bem feito!
– Ó Mérico, num digas uma coisa dessas.
– Pois digo que foi bem feito e digo munto mais! Quem a mandou trocar um rapaz pobre como eu, mas honesto, com honra, por um ricalhaço da alta sociedade de Tarapata? Teve o que mereceu!
O seu sarcasmo não poderia ser mais corrosivo. Alguém lhe recorda o velho ditado popular:
– Ó rapaz, num atires pedras ao teu vizinho que o mesmo pode vir no teu caminho.
– Num seja parvo, tio Jacinto! Eu sou homem! Desse mal num sofro!
– Pois és homem, meu rapaz, mas lembra-te de que tens duas irmãs em casa. A Irene parece que está bem encaminhada, com o rapaz mais velho da Isabel Batista... os Batistas são gente pobre, mas boa! Já a tua irmãzita mais nova, quando for mais crescida, num está livre de uma desgraça dessas.
– Ai de alguém que tente encostar um dedo nalguma das minhas manas! – vocifera Américo, enrubescendo. – Se algum filho-da-puta fizesse uma coisa dessas às minhas irmãs, podem crer que num se ficava a rir como aquele ricalhaço. Eu tirava-o do mundo em três tempos!
Leonardo estremece violentamente ao ouvir estas palavras e pensa no irmão. Acaba de beber o copo de vinho e interrompe o amigo:
– Mérico, vamos mas é mudar de assunto que essa conversa num cheira bem.
– Ó Leonardo, num vês que aqui o nosso rapazinho ainda está despeitado – sussurra o taberneiro. – Levou uma bigodaça do caneco e num grama o Filipe por lhe ter tirado a rapariga.
– Tio Ilídio, se a Donzília ficasse comigo garanto-lhe que nunca acontecia nada disso – murmura Américo. – Quando lhe pedi namoro, tinha ideias de casar com ela. Num era para já, que ainda sou novo, mas daqui por uns dois ou três anos casava com ela, de certeza.
– Agora, nem daqui por dois nem daqui por dez.
– Pois não, tio Jacinto. Eu num fico com o refugo dos outros. Ela quis assim, agora que se amanhe!
O jovem Batista aproxima-se do amigo e pede-lhe para sair à rua.
– Que queres, Leonardo?
– Fazes-me um favor? Compra-me um Kentucky. Mas num deixes ninguém perceber que é para mim, senão... se a minha mãe sabe...
Américo ignora as moedas que o outro lhe estende, entra de novo na taberna e dirige-se ao balcão de madeira gasta, de onde retorna pouco depois. Entrega-lhe um maço de Ritz. Leonardo, esbugalhando os olhos, protesta:
– Ó Mérico, eu pedi Kentucky! Este tabaco é munto caro!
– Deixa lá, Leonardo. Aquela porcaria de tabaco mata-ratos que costumas fumar num presta... nem filtro tem! Ofereço-te este maço para variares e logo vamos dar uma volta, está bem?
– Há baile nalgum lado?
– Acho que sim. Deixa ver o edital.
Os editais, como os aldeões se referem aos cartazes publicitários, são afixados na porta da taberna. Neste dia, há um; anuncia uma festa noutra aldeia a meia dúzia de quilómetros de Tarapata.
– Olha, há festa em Chã das Naves.
– E vais lá, Mérico?
– Só vou se fores comigo.
– Num sei se posso. Se a minha mãe ou o Rique me derem dinheiro...
– Hoje, o baile é de graça. É festa popular. E se num tens dinheiro pago-te duas cervejolas.
– Está bem. Vamos a que horas?

– Assim que estiver pronto, passo com a mota à tua porta.


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Excerto do meu conto «O Segredo de Leonardo»
Incluído na antologia luso-brasileira «Saloios & Caipiras»
Da Colecção Sui Generis

Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris


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