PREFÁCIO
Sensualidade e
erotismo são dois temas que se acham presentes nas artes desde tempos remotos,
tendo para a maioria das pessoas significados similares já que se esbarram constantemente
como sinónimos por serem ambos associados à volúpia (prazer sexual, luxúria,
deleite) ou à lubricidade (lascívia, sensualidade, libidinagem). No entanto,
existem diferenças entre eles.
A
sensualidade é uma qualidade humana relacionada com os sentidos. Através da
visão, da audição, do olfacto, do tacto e do paladar podemos perceber a
realidade ao nosso redor – embora a visão tenha um papel fundamental, os outros
sentidos também são activados com intensidade. Considera-se que algo é sensual
quando desperta o interesse de alguém de maneira especial e intensa, e abundam
os elementos que tornam algo sensual: alguns movimentos, certas formas, uma
atmosfera envolvente, uma música de fundo, um perfume, etc. Além disso, conota-se
frequentemente o sensual ao erotismo e à sexualidade pois imensos estímulos
provocam desejo, atracção. Porém, o sensual opõe-se ao usual e ao vulgar; o
prazer que se sente é subtil, difícil de descrever e muito subjectivo.
O erotismo, por sua vez, é uma manifestação da sexualidade cujas características
variam segundo a sociedade que se tome como modelo. Apesar de definido num
primeiro instante como “paixão de amor”, é necessário salientar o seu carácter
revalorizador das formas próprias da sexualidade, tanto na vida pessoal e
social como nas manifestações culturais. Sendo mais objectivos: o erotismo é o estímulo sexual sem apresentar o sexo de forma
explícita; embora possa significar também uma representação explícita da
sexualidade, podendo ser relacionado com o amor lascivo, designa, de um modo geral, não só um estado de
excitação sexual mas também a exaltação do sexo no âmbito das artes
(literatura, pintura, escultura, dança, etc). E é através desse apelo artístico
que o conteúdo erótico se diferencia, nalguma medida, da pornografia.
Há
traços singulares entre o erotismo e a pornografia que nos possibilitam
estabelecer uma diferenciação aceitável. Uma das diferenças mais comuns diz
respeito ao teor nobre do erotismo
(que possui componentes abertamente sensuais, e do ponto de vista cultural é
valorizado na sua dimensão estética) em oposição ao carácter vulgar da pornografia. O que lhe confere
esse grau de nobreza é o facto de o erotismo não se vincular directamente ao
sexo, enquanto a pornografia, na qual tende a haver uma maior preocupação
sexual do que estética, encontra no sexo explícito o seu espaço privilegiado.
Dessa forma, o erotismo, que tem sido fonte de inspiração constante na
literatura e nas artes, estará mais próximo do sexo implícito (portanto,
aceitável) e a pornografia do sexo obsceno, directo, explícito e
comercializável, sem nenhuma magia.
A reflexão sobre o
erotismo nasce com a civilização. Já em Platão está presente um dos aspectos
mais fecundos da reflexão erótica: a função libertadora de Eros, problema que
foi retomado pela psicanálise ao descrever o seu aspecto libertador para o indivíduo
e para a sociedade, bem como para ressaltar o seu carácter de confronto com o
sistema.
As primeiras representações artísticas de
clara intenção erótica foram realizadas pelos Gregos e Romanos. Surgem na
ornamentação de vasos de cerâmica, em pinturas murais, como nos frescos da
Villa dos Mistérios em Pompeia, e nas esculturas inspiradas em cenas
mitológicas de jogo amoroso. Nas paredes de Pompeia existem inúmeras pinturas
eróticas – um exemplo notável é o do bordel com desenhos dos vários serviços sexuais
oferecidos, em cima de cada porta. Encontram-se também figuras fálicas nas
calçadas desta antiga cidade do Império Romano (destruída durante uma grande
erupção do vulcão Vesúvio no ano 79), que mostram a direcção para o prostíbulo e casas de entretenimento.
Na Idade Média, estas
representações inscreveram-se com frequência na estrutura geral dos edifícios
civis e religiosos, esculpidas em mísulas, capitéis e gárgulas. Em paralelo, entre
os séculos X e XIII, a arte hindu desenvolveu uma forma de ornamentação
escultórica de carácter religioso centrado no tema do maithuna, ou
casal de deuses realizando o acto sexual em diversas posições, símbolo da união
da alma com a divindade. A introdução dessa perspectiva na pintura e na
escultura facilitou, a partir da Renascença, o diálogo erótico entre o
espectador e a obra, mas só no século XX o erotismo adquire uma autêntica
definição como tema independente, através das obras de Aubrey Beardsley, Gustav
Klimt, Henri Matisse e Pablo Picasso, entre outros.
No campo da
literatura, ao analisar as diversas obras que têm como tema central ou se
inspiram no erotismo é preciso distinguir as de ficção poética ou narrativa e
as que possuem um sentido gnómico ou didáctico. A esta última categoria
pertence o Kama Sutra, por exemplo. Por sua vez, o Cântico dos Cânticos (ou Cantares de Salomão), livro da Bíblia,
está repleto de uma profunda dimensão erótica, dando voz a «dois amantes que se
elogiam e se desejam com convites para o prazer mútuo».
A poesia erótica
encontrou no mundo romano uma nova amplitude ao incorporar elementos da
linguagem coloquial que facilitaram a expressão da sensualidade. Durante a
Idade Média, esse género evoluiu para uma liberdade cada vez maior, sobretudo
na poesia dos goliardos (clérigos pobres, desamparados pela Igreja Católica, de
espírito transgressivo e provocador), ao mesmo tempo que surgia, quase
contemporaneamente, a poesia do amor cortês, em que a inspiração erótica
acontece de uma forma altamente sublimada e codificada segundo certas regras,
fiel reflexo da sociedade feudal e cavalheiresca na qual se desenvolve. No Renascimento
e no Barroco a poesia erótica atinge o seu último momento de esplendor, pois
nos séculos seguintes perderia a sua especificidade como género distinto da
poesia amorosa.
Já nos séculos XIX
e XX o género erótico é cultivado por um extraordinário número de escritores
que mostra uma vitalidade que outros tipos de narrativa não têm tido. Nestes últimos
séculos, alguns dos autores mais famosos desse género foram Alfred de Musset,
George Sand, Oscar Wilde, Henry Miller, Anaïs
Nin, Georges Bataille, entre outros.
Pessoalmente,
escrevi o primeiro texto erótico, sob a forma de conto, no ano 2001, para o publicar
na revista Korpus – tendo-se seguido
largas dezenas de contos eróticos para outras publicações, jornais e revistas,
nas quais publiquei regularmente até ao ano 2012. Desde então, o erotismo
jamais abandonaria a minha escrita... quer sendo abordado explicitamente ou com
bastante subtileza, todavia, caminhando sempre de braço dado com a sensualidade
– quando não se vislumbra erotismo nalguma das minhas narrativas, a
sensualidade impõe a sua presença, mesmo no drama mais profundo ou num texto de
carácter policial. De facto, tanto o erótico quanto o sensual, dependendo do
contexto em que sejam tratados, são temas que, na escrita literária, me
fascinam de um modo quase insano. Por
essa mesma razão, mas não só, seria inevitável, depois de ter explorado diversas
temáticas de diferentes naturezas noutros projectos literários, organizar uma
obra colectiva com a presença dominante destes dois ingredientes, o sensual e o
erótico, ou com a junção de ambos, mesclando-os, a sensualidade erótica, nas
suas narrativas, independentemente das abordagens que cada autor lhes confere –
ora explícitas, ora subtis ou mesmo latentes, consoante as sensibilidades de
quem escreve. Resultou numa antologia de Contos
Sensuais e Eróticos que reúne contos e/ou pequenas estórias de trinta
autores lusófonos, cujo título, Devassos
no Paraíso, reflecte magistralmente os conteúdos da obra. Uma nova
antologia na Colecção Sui Generis plena de sensualidade e erotismo, que irá
proporcionar, seguramente, prazenteiras leituras. Pois então... boas leituras!
Isidro Sousa
DEVASSOS NO PARAÍSO
Contos Sensuais e Eróticos
Autores: Vários Autores
Organização: Isidro Sousa
Colecção Sui Generis
Editora Euedito
ISBN: 978-989-8896-03-2
Depósito Legal: 434951/17
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