– Ora viva o nosso amigo! Bons olhos te vejam, Cinderelo!
– estrondeia a voz do quarentão trajado de negro que ressurge ao balcão, agora
num tom fanfarrão, mostrando-se
bem-disposto. Bem-disposto até demais, vislumbra Jaime, e cínico até dizer
chega.
José Campos assusta-se ao ouvi-lo. Atordoado com a
presença daquela figura sinistra, enfia a nova bebida goelas abaixo,
engasgando-se.
– Cubano, manda aí outro Bannister. A mesma receita –
exige o estranho, sem o menor pudor. E vira-se para o psicólogo: – Então, Cinderelo,
dizes nada? Os anos não passam por ti, homem. Bem conservado. Belo como sempre.
Quando Malachi pousa no balcão um copo com três pedras de
gelo, o homem da caveira segura-lhe o braço, impedindo de o servir.
– Calma, Cubano! Guarda essa garrafa. Abre uma nova.
Inteira! E põe aí mais dois copos. Um para ti, outro para o Cinderelo – ordena
com muito à-vontade. E fitando novamente José Campos, com um sorriso mordaz: – Por conta da casa!
– Eu não bebo em serviço – balbucia Malachi.
– Comemorar o reencontro! – frisa o cliente, friamente. –
Brindar aos bons velhos tempos!
Malachi troca um olhar fugaz com o amigo e,
estranhamente, sem contestar esse pedido inusitado, faz-lhe a vontade: abre uma
garrafa inteira de Hankey Bannister, sob o olhar sempre atento de Jaime, e
serve as três doses. Que descaramento!, pensa Jaime, achando aquele
cliente estranhíssimo um verdadeiro abusador e surpreendendo-se com a atitude
do patrão, que lhe obedece qualquer ordem sem pestanejar. Forreta como ele
é, mão-de-vaca mesmo, e agora um mãos-largas com este tipo, comenta consigo
mesmo. Tem o rabo preso, só pode ser...
– Sai daí, Cubano! Vem para o pé de nós.
– Ó Bannister, agora não dá – protesta Malachi,
mencionando a casa cheia e o movimento sempre a aumentar. – Não posso largar o
balcão. Não vês o movimento?
O cliente, mostrando não aceitar recusas, fuzila-o com um
olhar gélido, intimidando-o, e Malachi acede, mais uma vez sem pestanejar, como
um cão rafeiro obediente ao dono. Jaime, que desde o início presta, discretamente,
especial atenção a todo esse episódio e está deveras curioso por saber quem é o
personagem em foco, capta finalmente um nome: Bannister. O patrão chamou-o
Bannister. A marca do seu whisky predilecto.
Imediatamente lhe vem à mente a gravação que fizera dias atrás e entregara ao
jornalista Renato Meirinho, que investiga as mortes recentes de três
homossexuais, ocorridas nos dias dos respectivos aniversários em circunstâncias
demasiado estranhas, e suspeita que Malachi Ferrero esteja implicado nelas.
– O Passarão – murmura surpreso, em voz alta, lembrando
que Malachi brindou ao aniversário de José Campos há menos de meia hora. – O
Passarão e dois Passarinhos!
– Que disseste, Jaime? – pergunta o colega de trabalho. –
Não entendi.
– Esquece, Nuno, só estava a pensar – responde Jaime, e
indicando o cliente de preto que aparenta ter o rei na barriga indaga: –
Conheces aquele tipo?
– Nunca o vi mais gordo. Pelo visto é amigo deles.
– Para o Malachi dar-se ao luxo de lhe oferecer uma
garrafa de whisky... deve ser mesmo
um grande amigo – sussurra Jaime, dando ênfase à expressão “grande amigo”.
– Raramente bebe em serviço, não oferece copos a ninguém... e justamente num
momento de grande tensão como este, connosco aqui no lodo, abandona o balcão
para lhe fazer companhia! Mas tudo bem. Ele é o patrão, ele lá sabe...
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Excerto do meu conto «Os Amigos de Malachi»
Publicado na antologia «Ninguém Leva a Mal»
Da Colecção Sui Generis
Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris
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