20 junho, 2017

EXCERTO DO CONTO «OS AMIGOS DE MALACHI» PUBLICADO NA ANTOLOGIA «NINGUÉM LEVA A MAL»


– Ora viva o nosso amigo! Bons olhos te vejam, Cinderelo! – estrondeia a voz do quarentão trajado de negro que ressurge ao balcão, agora num tom fanfarrão, mostrando-se bem-disposto. Bem-disposto até demais, vislumbra Jaime, e cínico até dizer chega.
José Campos assusta-se ao ouvi-lo. Atordoado com a presença daquela figura sinistra, enfia a nova bebida goelas abaixo, engasgando-se.
– Cubano, manda aí outro Bannister. A mesma receita – exige o estranho, sem o menor pudor. E vira-se para o psicólogo: – Então, Cinderelo, dizes nada? Os anos não passam por ti, homem. Bem conservado. Belo como sempre.
Quando Malachi pousa no balcão um copo com três pedras de gelo, o homem da caveira segura-lhe o braço, impedindo de o servir.
– Calma, Cubano! Guarda essa garrafa. Abre uma nova. Inteira! E põe aí mais dois copos. Um para ti, outro para o Cinderelo – ordena com muito à-vontade. E fitando novamente José Campos, com um sorriso mordaz: – Por conta da casa!
– Eu não bebo em serviço – balbucia Malachi.
– Comemorar o reencontro! – frisa o cliente, friamente. – Brindar aos bons velhos tempos!
Malachi troca um olhar fugaz com o amigo e, estranhamente, sem contestar esse pedido inusitado, faz-lhe a vontade: abre uma garrafa inteira de Hankey Bannister, sob o olhar sempre atento de Jaime, e serve as três doses. Que descaramento!, pensa Jaime, achando aquele cliente estranhíssimo um verdadeiro abusador e surpreendendo-se com a atitude do patrão, que lhe obedece qualquer ordem sem pestanejar. Forreta como ele é, mão-de-vaca mesmo, e agora um mãos-largas com este tipo, comenta consigo mesmo. Tem o rabo preso, só pode ser...
– Sai daí, Cubano! Vem para o pé de nós.
– Ó Bannister, agora não dá – protesta Malachi, mencionando a casa cheia e o movimento sempre a aumentar. – Não posso largar o balcão. Não vês o movimento?
O cliente, mostrando não aceitar recusas, fuzila-o com um olhar gélido, intimidando-o, e Malachi acede, mais uma vez sem pestanejar, como um cão rafeiro obediente ao dono. Jaime, que desde o início presta, discretamente, especial atenção a todo esse episódio e está deveras curioso por saber quem é o personagem em foco, capta finalmente um nome: Bannister. O patrão chamou-o Bannister. A marca do seu whisky predilecto. Imediatamente lhe vem à mente a gravação que fizera dias atrás e entregara ao jornalista Renato Meirinho, que investiga as mortes recentes de três homossexuais, ocorridas nos dias dos respectivos aniversários em circunstâncias demasiado estranhas, e suspeita que Malachi Ferrero esteja implicado nelas.
– O Passarão – murmura surpreso, em voz alta, lembrando que Malachi brindou ao aniversário de José Campos há menos de meia hora. – O Passarão e dois Passarinhos!
– Que disseste, Jaime? – pergunta o colega de trabalho. – Não entendi.
– Esquece, Nuno, só estava a pensar – responde Jaime, e indicando o cliente de preto que aparenta ter o rei na barriga indaga: – Conheces aquele tipo?
– Nunca o vi mais gordo. Pelo visto é amigo deles.

– Para o Malachi dar-se ao luxo de lhe oferecer uma garrafa de whisky... deve ser mesmo um grande amigo – sussurra Jaime, dando ênfase à expressão “grande amigo”. – Raramente bebe em serviço, não oferece copos a ninguém... e justamente num momento de grande tensão como este, connosco aqui no lodo, abandona o balcão para lhe fazer companhia! Mas tudo bem. Ele é o patrão, ele lá sabe...


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Excerto do meu conto «Os Amigos de Malachi»
Publicado na antologia «Ninguém Leva a Mal»
Da Colecção Sui Generis

Livro à venda na livraria online da Euedito
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