No ano
de 1974, o Henrique e eu éramos já crescidos. Eu continuava a ajudar a minha
mãe nas tarefas agrícolas e a cuidar dos animais enquanto ele ia ganhar o dia
sempre que alguma oportunidade lhe surgia, fosse a calcetar os estreitos
caminhos da aldeia, a recolher resina dos pinheiros ou mesmo nas obras quando
aparecia alguma empreitada. O seu trabalho era árduo, de Sol a Sol, mas dava
para ganhar algumas patacas, permitindo aliviar a indigência em que sempre
vivêramos e melhorar, aos poucos, as condições deploráveis do pardieiro onde
habitávamos. Quanto à Manuela, frequentava a escola primária.
Já
faltava pouco para o Henrique ir à tropa. Embarcaria contrariado para o Ultramar.
Nada havia a fazer, pois era uma obrigação à qual a rapaziada daquele tempo não
podia fugir. Nessa altura, ele namorava a Irene e eu era muito amigo do irmão
dela, o Américo. Eram dois jovens de idades aproximadas às nossas, filhos de
uma família igualmente humilde de Tarapata, os Pereiras, porém, com melhores
recursos do que nós, os Batistas. A Irene e o Henrique estavam destinados ao
casamento pois, naquela época e naquela terra, uma rapariga só podia namorar o
rapaz com quem viesse a contrair matrimónio, caso contrário haveria sérios
sarilhos. E eles, de facto, pretendiam casar, mas só quando o Henrique
regressasse do Ultramar. O Américo, por sua vez, era um belo catraio que andara
durante uns tempos enamorado por uma rapariga de uma aldeia vizinha, mas esta
rejeitara-o, preferindo namorar com outro, não tão bem-parecido mas filho e
neto de famílias abastadas, que lhe poderia proporcionar uma vida melhor quando
casassem.
Não
obstante esses destinos traçados, nesses dias viriam a ocorrer duas reviravoltas
que alterariam por completo o rumo dos acontecimentos: uma a nível nacional,
que mudaria a vida do País em geral, e a outra a nível familiar, que marcaria
para sempre a família Batista. A nível nacional, caía a Ditadura que dominara
Portugal durante várias décadas, libertando assim o Henrique e todos os outros
mancebos, daí em diante, de partirem para as guerras ultramarinas. Mas só
tomaríamos conhecimento desse facto bastantes dias volvidos porque lá na aldeia
não havia (ainda) rádios nem televisões e as notícias tardavam a chegar. A
nível familiar, o Henrique e a Irene haviam desrespeitado os bons costumes de
Tarapata ao petiscarem o fruto proibido, cuja brincadeira culminou numa
inesperada gestação.
A
Irene, ao dar-se conta do seu estado de graça, entrou em pânico, pois tinha
consciência de que prevaricara antes de casar, um facto que dentro de pouco
tempo não poderia mais esconder dos olhares maledicentes daquele povo, e o seu
pai, o senhor Ramiro Pereira, não era para brincadeiras. O Henrique, ao tomar
conhecimento dessa gravidez, temeu igualmente a fúria da família Pereira. Teria
de alterar os seus planos, casar rápido – antes de partir para o Ultramar
(nesses dias, repito, ainda não sabíamos que a Ditadura fora derrubada) – mas
não existia a menor condição financeira para dar esse passo. Ele estava
aterrado, desnorteado, sem saber o que fazer. Nós os dois, além de irmãos,
éramos o melhor amigo um do outro: foi comigo com quem ele desabafou.
Recriminei-o, obviamente. Não obstante, ao sentir o seu desespero, prometi
ajudá-lo. Como? Não sabia. O único pensamento que me ocorria é que o Américo
Pereira, irmão da Irene, era meu amigo íntimo, e seria através dele que eu
tentaria aplacar a fúria da sua família.
Não
havia tempo a perder. Desatei à procura do Américo. Sabia que podia achá-lo na
taberna, onde...
Excerto do meu conto «O Segredo de Leonardo»
incluído na antologia «Saloios & Caipiras»
da Colecção Sui Generis
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