07 junho, 2017

EXCERTO DO CONTO «O SEGREDO DE LEONARDO» INCLUÍDO NA ANTOLOGIA «SALOIOS & CAIPIRAS»


No ano de 1974, o Henrique e eu éramos já crescidos. Eu continuava a ajudar a minha mãe nas tarefas agrícolas e a cuidar dos animais enquanto ele ia ganhar o dia sempre que alguma oportunidade lhe surgia, fosse a calcetar os estreitos caminhos da aldeia, a recolher resina dos pinheiros ou mesmo nas obras quando aparecia alguma empreitada. O seu trabalho era árduo, de Sol a Sol, mas dava para ganhar algumas patacas, permitindo aliviar a indigência em que sempre vivêramos e melhorar, aos poucos, as condições deploráveis do pardieiro onde habitávamos. Quanto à Manuela, frequentava a escola primária.

Já faltava pouco para o Henrique ir à tropa. Embarcaria contrariado para o Ultramar. Nada havia a fazer, pois era uma obrigação à qual a rapaziada daquele tempo não podia fugir. Nessa altura, ele namorava a Irene e eu era muito amigo do irmão dela, o Américo. Eram dois jovens de idades aproximadas às nossas, filhos de uma família igualmente humilde de Tarapata, os Pereiras, porém, com melhores recursos do que nós, os Batistas. A Irene e o Henrique estavam destinados ao casamento pois, naquela época e naquela terra, uma rapariga só podia namorar o rapaz com quem viesse a contrair matrimónio, caso contrário haveria sérios sarilhos. E eles, de facto, pretendiam casar, mas só quando o Henrique regressasse do Ultramar. O Américo, por sua vez, era um belo catraio que andara durante uns tempos enamorado por uma rapariga de uma aldeia vizinha, mas esta rejeitara-o, preferindo namorar com outro, não tão bem-parecido mas filho e neto de famílias abastadas, que lhe poderia proporcionar uma vida melhor quando casassem.

Não obstante esses destinos traçados, nesses dias viriam a ocorrer duas reviravoltas que alterariam por completo o rumo dos acontecimentos: uma a nível nacional, que mudaria a vida do País em geral, e a outra a nível familiar, que marcaria para sempre a família Batista. A nível nacional, caía a Ditadura que dominara Portugal durante várias décadas, libertando assim o Henrique e todos os outros mancebos, daí em diante, de partirem para as guerras ultramarinas. Mas só tomaríamos conhecimento desse facto bastantes dias volvidos porque lá na aldeia não havia (ainda) rádios nem televisões e as notícias tardavam a chegar. A nível familiar, o Henrique e a Irene haviam desrespeitado os bons costumes de Tarapata ao petiscarem o fruto proibido, cuja brincadeira culminou numa inesperada gestação.

A Irene, ao dar-se conta do seu estado de graça, entrou em pânico, pois tinha consciência de que prevaricara antes de casar, um facto que dentro de pouco tempo não poderia mais esconder dos olhares maledicentes daquele povo, e o seu pai, o senhor Ramiro Pereira, não era para brincadeiras. O Henrique, ao tomar conhecimento dessa gravidez, temeu igualmente a fúria da família Pereira. Teria de alterar os seus planos, casar rápido – antes de partir para o Ultramar (nesses dias, repito, ainda não sabíamos que a Ditadura fora derrubada) – mas não existia a menor condição financeira para dar esse passo. Ele estava aterrado, desnorteado, sem saber o que fazer. Nós os dois, além de irmãos, éramos o melhor amigo um do outro: foi comigo com quem ele desabafou. Recriminei-o, obviamente. Não obstante, ao sentir o seu desespero, prometi ajudá-lo. Como? Não sabia. O único pensamento que me ocorria é que o Américo Pereira, irmão da Irene, era meu amigo íntimo, e seria através dele que eu tentaria aplacar a fúria da sua família.

Não havia tempo a perder. Desatei à procura do Américo. Sabia que podia achá-lo na taberna, onde...



Excerto do meu conto «O Segredo de Leonardo»
incluído na antologia «Saloios & Caipiras»
da Colecção Sui Generis


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