14 junho, 2017

EXCERTO DO CONTO «OS AMIGOS DE MALACHI» PUBLICADO NA ANTOLOGIA «NINGUÉM LEVA A MAL»


Mais ambiente, mais música, mais festa. Mais pessoas a chegarem. As fantasias multiplicam-se. Os clientes sempre a pedirem copos. Malachi, agora dentro do balcão, ajuda Jaime e Nuno, o outro barman. Subitamente, dentre a multidão compacta de corpos, surge um vulto masculino com aspecto sinistro, acompanhado por dois belos efebos – novos, esbeltos, corpos musculosos talhados em ginásios e atraentes, transmitindo a sensação de terem sido contratados pelo mais velho. Trata-se de um homem quarentão, totalmente trajado de preto, exibindo um fio metalizado com um crucifixo feito de caveiras no peito. É atendido por Jaime.
– Um Hankey Bannister. Dose dupla. Três pedras de gelo.
Malachi, que está de costas buscando uma bebida na prateleira, estremece ao reconhecer a voz, deixando a garrafa visitar o chão. Jaime percebe o seu súbito nervosismo e, como se não ouvisse o nome da bebida, fita de novo o cliente. Este repete, com as mesmíssimas palavras:
– Um Hankey Bannister. Dose dupla. Três pedras de gelo. – E ostentando uma expressão facial mais séria, audaz, enrugando a testa e esboçando um sorriso maléfico, prossegue num tom imperioso: – Por conta do Cubano. Teu patrão, meu velho amigo!
– Deixa, Jaime – murmura Malachi, encarando o cliente de ar sinistro. – Eu atendo.
– E dois copos de leite para os marmanjos – acrescenta o cliente e após Malachi servir-lhes um whisky, um Red Bull e um Pisang Ambon com laranja, os rapazes esgueiram-se na direcção da pista. – Já não se fabricam homens de barba rija... como antigamente.
– O que te traz por cá? – indaga Malachi.
– Rever os bons velhos amigos. Matar saudades – responde o estranho, nitidamente irónico. – Hum, conseguiste uma bela tasca. Parabéns, Cubano! Confesso que estava ansioso por vir conhecê-la. Esperava um convite. Se Maomé não vai à montanha...
– Por onde tens andado?
– Voltei para Madrid.
O homem vestido de preto exibe uma cigarreira de prata e acende um charuto. Malachi, sempre a observá-lo, sussurra num tom quase inaudível:
– Por favor, nenhuma negociata cá dentro. Peço-te apenas isso.
– Tranquilo, Cubano. Estou limpo.
Enquanto atende outros clientes, Jaime consegue captar o breve diálogo. Deduz que o cliente das caveiras em forma de crucifixo ao peito e charuto na boca é um velho conhecido de Malachi Ferrero, todavia, as palavras que trocam são demasiado parcas, contidas, algo dissimuladas, especialmente pelo patrão.
– Vou dar uma vista de olhos à capoeira.
– Não fumes lá dentro – recomenda Malachi. – A área de fumo é aqui.
– Hum. Está bem, Cubano – rosna o interlocutor, afastando-se do balcão.
– Este tipo ainda me vai arranjar chatices – cicia Malachi para si mesmo ao ver o outro sumir no seio da multidão já bastante compacta, em direcção à pista de dança, sem apagar o charuto.
Momentos depois, José Campos retorna, nitidamente assustado, ao balcão.
– Que noite estranha! Faz lembrar... tu sabes, Lachi – sussurra, mordendo as palavras. – Como se não bastasse a música e a Tailandesa que anda aí a cirandar, pareceu-me ver lá dentro... não tenho certeza, Lachi, vi-o à distância, mas...
– É ele mesmo, em carne e osso – confirma Malachi, prevenindo já o amigo e servindo-lhe outro copo. – Resolveu dar o ar da sua graça. E chegou a matar, com um descaramento que tu nem imaginas.
– Estamos fodidos! – exclama o psicólogo assombrado, como se tivesse visto realmente um fantasma. Mas procura camuflar o medo. – Não, Lachi! Não ponhas água nesse whisky. Dá-mo puro, bem forte – e emborca logo uma grande quantidade da bebida.
– Eu avisei-te que ele andava por Lisboa. Sabíamos que mais dia, menos dia iria aparecer.
– E tinha de ser justamente hoje? Nesta noite, pá!
– Age com naturalidade, Zé. Como antigamente.
Embora eles se esforcem por disfarçar um nítido desconforto, Jaime sente-os tensos. Conclui rapidamente que o nervosismo de Malachi se deve à presença do homem de preto que pediu três bebidas sem as pagar. Pressente que eles escondem algo. Gato escondido com rabo de fora, recorda. O psicólogo ingere os últimos goles de whisky, acende um cigarro e pede outra dose. Whisky puro, desta vez sem gelo.
– Cuidado com a bebida, Zé. Não percas o controlo!


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Excerto do meu conto «Os Amigos de Malachi»
Publicado na antologia «Ninguém Leva a Mal»
Da Colecção Sui Generis

Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris


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