Texto de GUADALUPE NAVARRO
Os acordes de piano ressoavam através das paredes do
edifício deixando seus moradores cansados de tanto ouvir aquela voz que tentava
acertar o tom daquela belíssima canção tão adequada à data que se aproximava. Natal,
alegria de crianças que esperam ansiosamente a chegada dos presentes tão
desejados. Mas, à medida que a infância vai ficando para trás, o Natal vai
perdendo seu encanto, assim pensava Micaela. Mas isto não impedia que desfrutasse
das numerosas reuniões, sorteios de amigo oculto ou ir à igreja que ficava não
muito longe de sua casa, para admirar o belíssimo presépio.
Esforçando-se ao máximo para tentar pronunciar da maneira mais
correta o latim da letra de Adeste Fideles, canção que cantaria na festa de
Natal de seu curso de pós-graduação em Filosofia Medieval. Micaela passa boa
parte da tarde entre partituras. Acordara por volta do meio-dia, tomara um café
e comera umas frutas, junto com umas folhas de alface e umas salsichas com
mostarda escura. Se emocionara ao ler em seu inseparável Iphone as notícias do
bombardeio de um hospital dos Médicos Sem Fronteiras. Vendo fotos e vídeos dos
escombros do hospital e das vítimas, chorara copiosamente. Para se acalmar,
abre uma garrafa de vinho branco, bebe uma taça e começa a ensaiar a canção.
Sentindo fome, resolve ir comer uma torta de chocolate
amargo no café-restaurante em frente ao seu edifício. Toma banho, põe um
vestido branco, calça umas sapatilhas, enrola uma echarpe verde no pescoço,
coloca um par de brincos, pega a bolsa e sai. Não esquecera de vestir nada. Lingerie
raramente toca o corpo de Micaela. Um corpo cheio de curvas, cintura fina,
quadris largos, uma derrière que atrai muitos olhares masculinos.
No elevador encontra uma vizinha que elogia sua voz e
perseverança. Micaela sabia que aquela senhora estava, com toda a educação, se
queixando de ter tido que ouvir a mesma canção repetitivamente. Agradece o
elogio, conversa sobre o tempo pois, tendo passado a infância em Londres, se
contagiara da obsessiva mania britânica de falar sobre o tempo, e comenta sobre
o bombardeio. A vizinha ignorava que tal absurdo tinha ocorrido. Micaela se
revolta com tamanha insensibilidade, mas disfarça e despede-se.
Ao sair do prédio Micaela se depara com ele. Sente um
arrepio lhe atravessar o corpo inteiro. Havia já alguns meses que Micaela não
sentia este arrepio. Mas como, além da fome, tinha uma outra coisa que deveria
fazer, com uma certa urgência, tenta desviar seus pensamentos para a torta que
comeria e para Godofredo, o filhote de buldogue que nasceria em poucos dias e
que passaria a fazer parte de sua vida. A escolha de nome tão peculiar era uma
homenagem a um príncipe inglês do século XII. Geoffrey Plantagenet, o belíssimo
e intrigante irmão de Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra, sempre
despertara verdadeira adoração em Micaela. Geoffrey, desde os dezesseis anos,
conspirara para roubar o trono de seu pai, Henrique II. Após a morte do pai,
Geoffrey continua suas intrigas para destronar o novo rei, Ricardo, seu irmão
mais velho. Pede ajuda ao rei da França, amigo muito íntimo, inimigo mais
íntimo de Ricardo. Uma história de intrigas, traições e triângulos amorosos
passada na Idade Média, época que Micaela adora.
Quando resolvera que um buldogue seria o novo companheiro
de sua vida, Micaela procurou entre seus personagens medievais favoritos um
nome adequado para o filhote. Geoffrey foi o escolhido, mas achara melhor
Godofredo, versão portuguesa do nome. Tão logo nasceu a ninhada, Micaela foi
visitar os filhotes. Encantou-se com o que aparentava ser mais fraco. Desde
então, passara a comprar o enxoval de Godofredo. Toalhas, mantas e roupinhas.
Comprara também pratos, mamadeiras e uma infinidade de brinquedos. Não se
esquecendo de encomendar um berço de veludo vermelho, sua cor favorita.
Era esse berço que Micaela pegaria após comer sua torta
favorita. Mas, repentinamente, isto pareceu meio irreal. A única coisa que
passou a ser real era o arrepio que a visão daquele homem de cabelos grisalhos
lhe causara. Micaela preferia homens mais novos, mas aquele homem, que
certamente já passara dos quarenta, a olhara de tal maneira que o arrepio que
ela conhecia tão bem voltara a atravessar seu corpo. Micaela não era muito de
sentir este arrepio. Tão logo o sentia, sentia o clitóris a pulsar, sentia uma
comichão no bico dos seios, sentia sua vagina umedecer. Micaela não sentia este
arrepio com muita frequência. Sua vida sexual, comparada à de suas amigas, era
calma. Mesmo assim, Micaela tinha muito o que contar.
Como a história do advogado que conhecera, estando em um
bar com uma amiga. O sujeito estava mais interessado na amiga de Micaela, e
Micaela estava mais interessada em tomar sua segunda caipirinha. Era verão,
calor insuportável, o álcool a correr por suas veias, faziam Micaela ferver de
calor. Pede um copo com gelo e coloca uma pedra de gelo entre as pernas. O
advogado fica atônito com a desenvoltura com que tal gesto é feito. A amiga
tenta imitar Micaela, mas a cópia nunca é como o original. O advogado esquece a
amiga e avança para cima de Micaela com toda a artilharia. Não sendo possível
fazer frente à artilharia pesada, a rendição ocorre na sala do apartamento do
advogado, com Micaela sendo penetrada de quatro, berrando de prazer... Receoso
que tais berros saíssem das paredes de seu apartamento, o advogado tapa a boca
de Micaela, gesto este que a enfurece, fazendo-a morder um dedo da mão do advogado.
Que também se enfurece. O resultado de tanta fúria foi uma das melhores
trepadas da vida de Micaela.
Outra história que as amigas de Micaela adoravam era a do
motorista de sua prima. Micaela
estava visitando a prima, cujo motorista era um sujeito simpático e falante.
Adorava conversar, coisa que Micaela também apreciava. Uma noite, Micaela, a
prima e algumas amigas encontram-se em um bar para comemorar o noivado de uma
das garotas. Micaela e a prima exageram nos piscos sauer e, enfadadas com a
conversa sobre a aliança de diamantes recebida pela noiva, resolvem ir a uma
livraria procurar um livro do poeta César Vallejo. No caminho param em um
vendedor ambulante que vendia echarpes. Justamente este vendedor de rua tinha a
echarpe de um tom de vermelho que Micaela procurava em todas as lojas. Após
comprar o livro, a prima chama o motorista que chega rapidamente. Após deixar a
prima em casa, o motorista deveria levar Micaela para a casa do tio em que ela
estava hospedada. Mas de repente Micaela sente um incontrolável desejo de ver o
mar e pede que o motorista pare. Estava frio. O vento gelado provoca o arrepio
que Micaela conhecia muito bem. Em um piscar de olhos, Micaela ataca o
motorista que tinha descido do carro para acompanhá-la a caminhar pela areia.
Os dois acabam no banco de trás envoltos em uma sinfonia de graves e agudos
ressoando por entre o ruído das ondas e do vento. Ao voltar para casa,
Micaela encontra o tio ainda acordado. Este indaga a razão de chegar a tal
hora. Para o tio, Micaela ainda era aquela menina que fora morar em outro país,
após a morte do pai e o segundo casamento da mãe com um diplomata estrangeiro.
Micaela conta a verdade, em parte. Conta que teve vontade de ver o mar e,
acompanhada do motorista de confiança da prima, fora dar um passeio à beira
mar. O tio acredita, candidamente. Seria difícil não acreditar em Micaela, uma
garota que passara a adolescência entre livros e mesmo já adulta não gostava
muito de festas e nem tinha tido um namorado conhecido. Não que ninguém nunca
tivera se apaixonado por ela mas, para Micaela, amor, para ser verdadeiro,
tinha que ser transgressor. Como o de sua tataravó paterna que, desafiando
convenções, amara e tivera filhos com um padre.
Micaela tinha muito para contar sobre suas aventuras
sexuais. Não que fosse promíscua, pelo contrário, em comparação com suas amigas
tinha tido poucos amantes. O que era interessante na vida sexual de Micaela
eram as circunstâncias, os seus parceiros. Todos penetraram o seu corpo, nenhum
tocou seu coração.
Mas ao ver o homem de cabelos grisalhos andando em sua
direção, o medo se apossa de Micaela. Lembra-se do que acabara de ocorrer a uma
de suas melhores amigas. As duas tinham ido assistir a um show de música
africana. Assim que chegaram, a amiga de Micaela se interessa por um verdadeiro
deus de ébano que fazia parte do grupo musical que estava tocando em um centro
cultural. Depois do show as duas foram até o camarim para agradecer os convites
ao produtor, amigo de Micaela. A intenção de Micaela era agradecer os convites,
conversar um pouco, tirar umas fotos para postar nas diversas rede sociais que
participava. E voltar para casa, pois tinha que acabar de ler um texto para uma
prova no dia seguinte. Assim o fez, deixando a amiga na mais absoluta adoração
ao deus de ébano. A amiga adorava homens cor de ébano, sempre elogiando o vigor
destes nos embates sexuais. Micaela queria comprovar se isto era verdade.
Tentara algumas vezes, mas o máximo que conseguiu foi uma chupada nas escadas
do edifício de um casal amigo que, naquela noite, comemorava seu quinto
aniversário de casamento com um jantar. Micaela apreciara a chupada, mas não
pudera terminar de comprovar o que tanto lhe despertava a curiosidade pois,
devido a um cigarro jogado em cima de um tapete que provocou pouco fogo, mas
muita fumaça, um verdadeiro pandemônio tomou conta do edifício. Todos começaram
a descer pelas escadas, tão apavorados que sequer repararam naquela mulher com
as pernas arregaçadas ou no homem cuja cabeça e torso se escondiam entre as
saias do vestido da mulher. A histeria era tal que um sujeito tropeçou em
Micaela, caindo em cima de seu parceiro. Resultado: os dois acabaram com
contusões sérias. Quanto a Micaela, tinha apenas mais uma história para contar
e fazer suas amigas rir de suas aventuras.
Mas na noite em que Micaela deixara sua amiga com o deus
de ébano, nem tudo acabara em risos. Micaela tinha adormecido, rodeada de
textos e alguns bichinhos de pelúcia que faziam parte da enorme coleção
acumulada ao longo de anos. Acordada pelas notas de Bach de seu Iphone, pois
Micaela adorava Bach e colocara uma de suas composições como toque de chamadas
do aparelho, Micaela responde e reconhece a voz da amiga. Estava internada em
um hospital, com hemorragia vaginal, causada pela violência do ato sexual.
Também quase fora estrangulada, pois o deus de ébano a esganara durante a
trepada. Depois deste dia, Micaela prometera a si mesma em tomar cuidado e não
se deixar dominar pelos arrepios que, de tempo em tempo, lhe assaltavam o
corpo. Tudo isso passa pela cabeça de Micaela enquanto o homem de cabelos
grisalhos se aproxima. Micaela não consegue se mexer, tal a intensidade do
olhar azulado daquele belo homem, vestido casualmente, mas nem por isso menos
elegantemente. Micaela resolve encarar a situação. O homem grisalho pergunta
se, por acaso, sabia onde ficava a loja de roupas que um amigo lhe indicara.
Conta que está de passagem pela cidade, voltando para casa após um congresso de
publicidade. Por um desses acasos que só o destino pode explicar, Micaela
conhecia o gerente da loja de roupas, onde ela comprava presentes para seus
amigos. Micaela explica o caminho para chegar à loja e também lhe fala da
qualidade das roupas ali vendida. Mas como tudo isto não passava de desculpa para
um primeiro contato, os dois começaram a rir. O homem de cabelos grisalhos
disse seu nome: Alexandre. Micaela logo se lembrou de um de seus heróis, o
grande Alexandre, que conquistou um império que só não foi maior que o amor que
o uniu a Hefestion que, ao partir deste mundo, deixou o grande conquistador
desolado, contribuindo para sua prematura morte. Esta paixão avassaladora
sempre despertou o romantismo em Micaela. Era este tipo de amor que Micaela
queria em sua vida. Não o encontrando, Micaela seguia pela vida à mercê dos
arrepios que, ocasionalmente, atacavam seu corpo.
Alexandre sugere que continuem a conversa no café em
frente. Micaela se lembra do berço de Godofredo que deveria buscar. Explica
isto ao grisalho. Alexandre estranha o nome do bebê, pensando tratar-se de um
possível filho da jovem. Mas antes de poder dizer qualquer coisa, se viu ante a
porta de um táxi, com Micaela puxando-o para dentro do veículo. Micaela pega o
seu Iphone e mostra fotos do filhote de buldogue. Começa a contar a história do
príncipe inglês cujo nome acabou sendo escolhido para nome de um lindo
cãozinho. Qualquer homem teria estranhado a desenvoltura com que aquela jovem
mulher de cabelos avermelhados o puxara para dentro de um carro. Certamente, a
teria considerado uma doidivana ou coisa pior. Mas havia uma certa inocência,
uma certa candura naquela jovem que tornava impossível julgá-la com severidade.
E durante o curto percurso, de menos de cinco quilômetros, os ouvidos de
Alexandre foram bombardeados por um turbilhão de palavras pronunciadas pelos
carnudos e sensuais lábios de Micaela. A velocidade com que Micaela mudava de
assunto, a diversidade de temas sobre os quais Micaela falava, com um
conhecimento que não era superficial, deixaram Alexandre atônito. Tão atônito que
mal percebe que tinham chegado à frente da petshop. Micaela pede ao taxista que
a espere. Sai rapidamente do veículo e, entrando no interior da loja, para em
frente a uma árvore de Natal com bolas vermelhas. Alexandre vê Micaela falando
com o vendedor e a escuta negociando a compra da árvore de Natal. Como se
tratava de parte da decoração da loja, o vendedor chamara o gerente. Micaela
começa a contar a história da popularização do costume germânico de decorar
pinheiros com bolas de vidro e outros enfeites. Tudo tinha começado com o
casamento da Rainha Vitória da Inglaterra com o príncipe Albert de
Saxe-Coburgo-Gotha. O príncipe tivera que engolir seu orgulho de macho e
aceitar que quem reinava sobre o vasto império britânico era a esposa e não
ele, dedicando sua vida a supervisionar a educação dos filhos e a cuidar de
assuntos tão importantes como a decoração natalina dos inúmeros palácios da
esposa. Assim sendo, todo Natal mandava trazer pinheiros das florestas da
Saxônia. O vendedor e o gerente fingem estar interessados na história,
escutando pacientemente o relato. Alexandre se aproxima da árvore para tentar
descobrir o motivo pelo qual esta árvore, aparentemente igual a tantas outras,
se tornara tão importante para Micaela. Observa as bolas e vê, em cada uma
delas, a imagem de filhotes das mais variadas raças. Entende a importância
daquele filhote de buldogue, de nome tão peculiar, na vida daquela bela e
atraente mulher. Um sentimento de ternura dominou Alexandre, mas antes que
pudesse analisar calmamente tal sentimento, se viu carregando um pacote com o
berço de Godofredo e Micaela a lhe explicar o acordo que tinha feito com o
gerente. Perante a insistência de Micaela, não restara ao pobre gerente
conseguir com o fornecedor duas dúzias de bolas iguais às que enfeitavam a
árvore de Natal da loja. Com seu Iphone, Micaela tira várias fotos da árvore da
loja. Quer tirar uma foto de Alexandre, mas este pede que não o faça, alegando
que não gosta muito de tirar fotos, sem perceber que aparecia em duas fotos que
Micaela tirara.
De volta ao táxi, sem parar de falar na necessidade de
encontrar um pinheiro, Micaela, subitamente, pega a mão de Alexandre e a coloca
entre suas pernas. Este sente a umidade perneando seus dedos. Micaela olha
Alexandre nos olhos, morde suavemente seu lábio inferior e com a língua
acaricia sua orelha. Alexandre, em um misto de excitação, surpresa e espanto,
começa a passar as mãos pelas coxas de Micaela. O taxista que, olhando pelo
retrovisor, nada deixara escapar, avisa que tinham chegado ao edifício, onde
Micaela morava. Esta, antes que Alexandre pudesse dizer qualquer coisa, paga e
sai rapidamente do táxi. Alexandre pega o berço de Godofredo e a segue. No
elevador cruzam com um vizinho, rapaz de boa aparência que estava carregando
vários embrulhos de presentes. Micaela começa a falar das bolas que encomendara
e da necessidade de comprar um pinheiro. O rapaz conta que tinha encomendado um
pinheiro antes de saber que seu namorado comprara uma árvore de fibra ótica e
que, se Micaela aceitasse, poderia lhe dar o pinheiro. Micaela, visivelmente
emocionada, aceita e beija o rapaz carinhosamente. Sai do elevador andando
rapidamente até à porta de seu apartamento, abre a porta, entra, pega o berço
de Godofredo das mãos de Alexandre, o coloca sobre uma mesa, se aproxima de
Alexandre, lhe beija o pescoço, começando a desabotoar sua camisa, acariciando
seu peito. Alexandre segura seu rosto e a beija na boca. Um longo beijo. Suas
línguas se acariciam. De repente Micaela se afasta e vai até à cozinha. Abrindo
a geladeira, pega a garrafa de vinho que guardara algumas horas antes, se serve
uma taça, bebendo um bom gole, oferece uma taça a Alexandre que, sem nada falar,
bebe. Alexandre puxa Micaela para perto de si, mas esta escapa de seus braços,
novamente abrindo a geladeira, desta vez tirando uma jarra com água. Bebe um
copo cheio deste líquido e passa por Alexandre, sem olhá-lo, sem nada falar.
Aliás, o silêncio de Micaela, desde que chegara em casa, começa a perturbar
Alexandre. Decidido a tentar conversar com Micaela, vai à sala e não a
encontra. Entra no corredor e vê uma porta fechada, bate na porta. Não há
resposta. Um sentimento de medo vai se apoderando de Alexandre. Insiste em
bater na porta. Finalmente, Micaela aparece. Vestia um roupão de seda vermelho
e conta que, por estar com fome, tinha pedido uma pizza, chegaria em uma hora.
Sem dizer mais nada, pega Alexandre pela mão, leva-o até à cama, empurra-o.
Alexandre cai sentado. Micaela tira o roupão se inclina e começa a abrir a
calça de Alexandre...
O interfone toca, Micaela veste o roupão vermelho e sai
rapidamente do quarto. Alexandre, ainda ofegante, se dirige à sala onde vê
Micaela sentada à mesa de jantar, comendo uma segunda fatia de pizza. Depois,
vai à cozinha, pega um pote de sorvete de chocolate e oferece educadamente um
pouco a Alexandre, este recusa, ela come tudo. Alexandre observa, calado. A
mulher doidivana, de comportamento transloucado, o cativara. Aquela hora
passada com ela na cama tinha sido sublime. Não se tratava de uma mulher
qualquer. Era bela, culta, interessante. Porém, estando separado da esposa, com
quem tinha uma filha de nove anos e estando a menina com dificuldade em
adaptar-se à nova situação familiar, fizera uma promessa à menina de voltar
para casa. Combinara com a esposa que tentariam uma reconciliação, não só pela
menina, mas porque, apesar do desgaste da relação, ainda se amavam. Não
apaixonadamente como antes, mas com um amor sereno e maduro. Alexandre tinha
planejado voltar para casa no Natal. Tinha tido alguns encontros com a esposa
para tentar reacender a chama sexual entre os dois. Os encontros tinham dado
certo. Tinha mandado fazer novas alianças para ele e a esposa. Tinha planejado
tudo. Só não tinha planejado cruzar com Micaela na rua e acabar traindo a
esposa, antes mesmo de com ela reconciliar-se. Enquanto Alexandre remoía suas
dúvidas e culpas, Micaela conversava com alguém por WhatsApp. Estava tão
absorta na conversa que sequer percebera a aproximação de Alexandre e,
assombrado e perplexo, lia o diálogo e via as fotos que sua amiga Tatiana lhe
mandava. Tatiana era meia-irmã da esposa de Alexandre e fizera uma
pós-graduação em Museologia na cidade onde Micaela morava. Um dos colegas de
Tatiana no curso tinha sido Frederico, o rapaz que presenteara Micaela com o
pinheiro que ela tanto desejava.
Adorando museus, Micaela sempre frequentava o museu onde
Frederico e Tatiana estagiavam. Acabaram se tornando amigos daquela mulher que
ficava tardes inteiras admirando esculturas e quadros. Numa destas tardes, os
três conversavam animadamente, na cafeteria do museu, quando um homem em seus
trinta e tantos anos se aproxima da mesa. Era Pedro, vizinho de Micaela, que,
sendo advogado, estava tratando do divórcio do diretor de museu que, devido à
próxima inauguração de uma exposição com obras de Kandinsky, mal tinha tempo de
sair do local e por isso pedira ao advogado que fosse até o museu para discutir
as exigências da ex-mulher. Pedro e Frederico se apaixonaram e, em menos de três
meses, Frederico se tornou vizinho de Micaela.
Tendo visto uma das fotos na petshop que Micaela postara
em uma rede social, Tatiana estava contando à amiga quem era o homem grisalho e
mandando fotos do cunhado com a família. Alexandre leu a resposta que Micaela
escrevera: “Teu cunhado?! Poderia mentir, inventar uma estória. Mas não vou
fazê-lo! Sou tua amiga, não gosto de mentir. Sinto muito, como poderia imaginar
que é marido da tua irmã? Melhor não contar nada. Mas sei que não contar vai
ser difícil. Pense em tua sobrinha. Ela é quem mais importa!”
Micaela vira o rosto e encontra os olhos de Alexandre,
olhando-a com um misto de surpresa e medo. E dando gargalhadas se levanta, vai
até o quarto, entra no banheiro, toma uma chuveirada, veste um vestido vermelho,
pega uma echarpe cor de areia, coloca brincos de Murano vermelho em forma de
gotas, calça uns sapatos vermelhos de salto alto, troca de bolsa, escolhendo
uma da mesma cor que a echarpe, coloca um pouco de perfume, se dirige para a
sala, vai até o piano, pega a pasta com suas partituras e passa por Alexandre
sem falar nada. Quando já está na porta se vira e, olhando Alexandre com um
olhar cheio de malícia, diz:
– Feliz Natal!
---
in «Boas Festas», páginas 79-88
Silkskin Editora, Dezembro 2015
NOTA BIOGRÁFICA DA AUTORA
Nascida em Lima, Peru, Guadalupe Navarro vive no Rio de Janeiro, Brasil. É bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com pós-graduação em Filosofia Contemporânea. Participou em diversas antologias de poesia, no Brasil e em Portugal. Em 2015,
publicou o livro «Poemas da Alma», pela Pastelaria Studios Editora. A convite
de Isidro Sousa, faz a sua estreia em prosa na antologia «A Bíblia dos
Pecadores», com «A Estátua de
Sal», e publicou «O Arrepio de Micaela» na antologia «Boas Festas».
Muitos parabéns, Guadalupe! Achei este conto uma delícia. Ainda bem que o nosso amigo a incentivou a juntar-se a nós nesta aventura encantada que é a escrita. Umas boas entradas e um ano novo com inspiração redobrada. Bjs
ResponderEliminarEsta Micaela cheia de (certos) arrepios é mesmo uma delícia, não é?
EliminarSoberbo,poeticamente descritivo,criastes uma história cheia de adjetivos,cativante,sensual,Manuela acertou em cheio,parabéns amiga Guadalupe Navarro.
ResponderEliminarÉ Micaela, Jonnata. A Manuela é uma outra personagem do conto «A Angústia de Manuela», de minha autoria, publicado na antologia «A Bíblia dos Pecadores», da qual és (também) co-autor. Tal como a nossa amiga Guadalupe Navarro.
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