João
Carlos era um rapaz bonito de vinte e dois anos de idade, descendente de uma
ilustre linhagem de Vila Rica, mimado pelos luxos da vida que a família Melgaço
lhe ofertava, perene aspirante por imposição paterna ao curso de Medicina que detestava;
ao invés de estudar, preferia multiplicar beijinhos e beijocas, em esplanadas e
discotecas, pelas amigas que lhe repetiam à exaustão que era um querido, fazendo-o retribuir sempre com
mais carinhos. Atrevido e um tanto inconsequente, boémio por natureza, de olhar
travesso, cabeça rapada, ombros fortes, pele morena e rosto harmonioso deveras
atraente, via a sua atenção ferozmente disputada por todas as moçoilas lá da vila.
Não
obstante tamanho assédio feminil, o seu coração suspirava por uma camponesa de
São Bertinho (aldeia situada nas encostas da Serra Mourisca, a seis quilómetros
de Vila Rica) que conhecera numa tarde primaveril do ano anterior, quando conduzia
a Harley-Davidson pelas estradas da
Serra Mourisca e se espalhara no chão, devido à ousadia da ovelha tresmalhada que
fugindo do rebanho atravessou à sua
frente numa curva fechada, oculta pela vegetação silvestre, atropelando o motoqueiro. O acidente não
foi grave; resultaram somente ligeiros arranhões provocados pelo asfalto e
dores no corpo varonil. A fúria de João Carlos, no entanto, mal se ergueu do
chão disposto a encarar o dono do rebanho para o destratar, cedeu instantaneamente
lugar à magia, ao encanto, à emoção de descobrir aquele anjo de candura que
guardava os ovinos. Era uma adolescente de aparência delicada chamada Celina,
filha de um casal de camponeses de São Bertinho, que passava os dias na
cordilheira a cuidar das ovelhas.
Paixão
fulminante, e recíproca: amor à primeira vista! Enamorado por aquela chavala graciosa
de rosto angelical, João Carlos trocou rapidamente as animadas tertúlias
recheadas de cerveja com amigos nas esplanadas de Vila Rica por escapadelas sorrateiras
à aldeia de São Bertinho, em busca de Celina, cujo amor não tardou a
conquistar. Os discretos passeios na Serra Mourisca tornaram-se frequentes, já
que iniciava um namoro bastante reservado com a formosa pastorinha dos seus
sonhos – namorar uma humilde camponesa teria de ser um acto sigiloso, protegido
de olhares indiscretos; por essa razão, ocultava a existência de Celina de todo
o mundo, não fosse o diabo tecê-las e chegar aos ouvidos do Sr. Horácio Melgaço
que o seu único filho perdera-se de amores por uma campónia. Compreendendo o
receio fundamentado do amado, Celina aceitou namorar às escondidas, inclusive
dos próprios pais.
O
tempo foi correndo, recheado de encontros furtivos, maravilhosos, cada vez mais
envolventes, ora na cordilheira verdejante resguardados das vistas do povo durante
as horas em que Celina alimentava as ovelhas na serra, ora na praia fluvial camuflada
por silvados, carvalhos e amieiros, do Rio Luzio que passava rente à aldeia,
nas abafadas tardes de Verão, após Celina recolher as ovelhas ao curral depois
do pastoreio matinal. Fora nesse recanto encoberto pela Natureza que João
Carlos ousou ir mais além, procurando desvendar, seduzir, desnudar o corpinho
de Celina e ela, totalmente enlouquecida de amor, dominada pela paixão
flamejante que lhe queimava as entranhas, se lhe entregou de alma e coração.
A
clandestinidade durou mais de um ano, até ao dia que a imprudência denunciou
esse amor secreto com um doce sabor a pecado, qual fruto proibido sempre o mais
apetecido. As vastas deslocações do filho do Presidente da Câmara a São
Bertinho começaram a dar nas vistas. João Carlos nunca falava com ninguém, esquivava-se
a qualquer tentativa de diálogo, mesmo quando entrava na taberna da aldeia para
comprar tabaco ou beber uma cerveja. Gerava desconfiança nos aldeões, intrigava
a rapaziada, passou a ser vigiado quando o potente motor da Harley-Davidson retumbava nas ruas da aldeia.
Naquela tarde desafortunada para os amantes incógnitos, avistou Celina a ajudar
os pais numa horta e decidiu parar na taberna. Esperou até vê-la caminhar na
direcção do Rio Luzio, terminou a cerveja e rumou ao refúgio secreto, sem perceber
que três adolescentes o seguiam de bicicleta. Pouco depois, Celina encontrou-o
a mergulhar nas águas do rio. Não suspeitando que os rapazes das bicicletas se
haviam escondido numa moita, adentrou descontraída pela vegetação cerrada, arribou
ao rio e atirou-se aos braços do amado. Os actos libidinosos que protagonizaram,
repletos de erotismo e muita paixão, seriam devidamente testemunhados pelos olhares
incrédulos dos espiões embasbacados que não hesitaram em divulgar a pouca-vergonha daquela santinha do pau-oco.
O
inusitado burburinho alastrou-se como um rastilho de pólvora pela povoação. Alguns
habitantes acreditaram nos adolescentes linguarudos, os mais cépticos duvidavam
da veracidade do boato. O rumor chegou rápido a Vila Rica: o filho do Sr. Presidente
perdeu-se de amores pela catraia do Joaquim Santos que cria ovelhas em São
Bertinho. O todo-poderoso Horácio Melgaço, presidente da Câmara Municipal e dono
de uma empresa de produtos alimentares, não tardou a deslindar, por portas e
travessas, o secreto romance, ilícito aos seus olhos. Sem hesitar, fez intervir
a sua autoridade:
—
Essa moça não tem onde cair morta! O pai dela é um pobre diabo que só sabe tosquiar
ovelhas.
—
Por favor, pai... não seja preconceituoso — implorou João Carlos, tentando apaziguá-lo.
— Afasta-te
rapidamente dessa cachopa antes que as coisas assumam proporções maiores.
— A
Celina é uma miúda séria, pai! Nunca olhou para outro rapaz e ser pobre não é
desonra.
—
Ousas desafiar-me, meu palerma? — vociferou o progenitor, enfurecendo-se. — Se continuares
envolvido com essa gente pacóvia, não contes comigo para mais nada.
—
Pai, por favor, acalme-se... Eu amo a Celina e ela também me ama...
— Se
te passa pela cabeça a mais ínfima ideia de casar com essa pobretona, faz de
conta que eu morri sem te deixar um vintém furado! Deserdo-te, João Carlos
Melgaço!
— Nunca
me ocorreu casar. Mas um dia mais tarde... não me importo de subir ao altar com
a Celina.
— Ouve,
estúpido ignorante: tu ainda não percebeste que és um rapaz inteligente e tens
a ventura de ser meu filho? O meu único filho varão! Basta fazeres o curso de Medicina
e terás um futuro brilhante. Mas tens de te aplicar nos estudos de uma vez por
todas.
—
Prometo dedicar-me ao curso se o pai permitir... A Celina é a miúda da minha
vida...
—
Chega, imbecil! Basta de borgas! Ou partes já para Coimbra ou fecho-te a
torneira! E se pretendes mesmo casar, providenciar-te-ei um bom casamento quando
concluíres o curso, garanto!
Apesar
do arroubo apaixonado, nunca se soube ao certo se João Carlos amava realmente Celina
ou se essa paixão arrebatadora era somente um capricho da sua juventude rebelde.
Só se sabe que após a intervenção ameaçadora do patriarca, ele sumiu de Vila
Rica sem deixar rasto. Julho voou e a Harley-Davidson
nunca mais rumou à Serra Mourisca; não tornou a passar por São Bertinho nem a
procurar a praia fluvial do Rio Luzio, onde Celina o esperava com um sorriso
encantador e o coração a palpitar de esperança e amor, durante as tardes em que
ele não aparecia na cordilheira. Na verdade, Horácio Melgaço despachara o filho
de armas e bagagens para a casa do seu velho tio Herculano Melgaço, que vivia em
Coimbra, em cuja universidade João Carlos ingressara dois anos atrás.
***
O
brusco desaparecimento do amado fez Celina sofrer desalmadamente. Derramava
lágrimas de sangue porque considerava-se a futura esposa dele; entregara-lhe o
corpo e a alma julgando que um dia contrairiam matrimónio. Não obstante as
juras de amor, João Carlos nunca lhe falou em casar. Porém, na sua ingenuidade,
faltava apenas o pedido oficial para o casamento; mas acreditava cegamente no
amor do rapaz. Quando Agosto arribou, o sorriso luminoso já se lhe apagara dos
lábios. Os olhos outrora cintilantes tornaram-se doentios. Não se alimentava, vivia
angustiada, apática, choramingava pelos cantos. Sentia dores de cabeça,
cólicas, náuseas, um cansaço tremendo. Enjoava constantemente, vomitava,
desmaiava. Dona Henriqueta, alarmada com o estado da filha, não tardou a
reconhecer-lhe os sintomas: gestação! Ao inteirar-se da gravidez de Celina, o
pai espumou de raiva, quase a espancou. Exigiu saber quem era o malfeitor que
abusara dela, enlameando o nome da sua honrada família.
—
Diz logo, desgraçada! Quem foi o bandido que te emprenhou?
Celina
revelou o nome, aos soluços. Confessou que se amavam e namoravam há mais de um
ano.
— Como
há mais de um ano, sua desavergonhada? — gritou o pai, perdendo as estribeiras.
Namoravam
escondidos na serra quando pastoreava as ovelhas. Outras vezes no rio. Apavorada,
Celina falou tudo; inclusive, que queriam
casar, mas João Carlos sumiu de repente. Só então o homem assimilou porque João
Carlos visitava tanto a aldeia e deu crédito aos boatos que circulavam no povo.
—
Filho da puta! — rosnou Joaquim Santos para a esposa. — Iludiu a nossa filha
com promessas de casamento, desonrou-a e abandonou-a. Caralhos me fodam se a
brincadeira ficar assim, Henriqueta!
Foi
ao quarto trocar de roupa e saiu para a rua. Dona Henriqueta, assustada, correu
atrás dele.
— Volta
para casa, mulher! Vai cuidar da tua filha que este assunto é para homens!
Chamou
um táxi. Vinte minutos depois, achava-se no edifício dos Paços do Concelho.
Exigiu falar com o Sr. Melgaço. O motivo era urgente, e particular! De nada
valeram os pretextos que a funcionária apresentou: que ele não agendara uma
hora, que o Sr. Presidente estava numa reunião e não sabia se...
—
Não venha com desculpas da treta, minha senhora! Eu não sou estúpido! Não
arredo pé daqui até falar com o Sr. Bagaço! — garantiu Joaquim Santos, sarcástico.
— Diga-lhe que sou o Joaquim Santos de São Bertinho, pai de uma miúda menor de
idade chamada Celina. Avise também que se o Bagaço não falar comigo, eu prego-lhe
um Cagaço! Vou à casa dele procurar o traste do filho, esse pelintra...
A
secretária do Presidente associou o nome Celina aos rumores sobre João Carlos e
transmitiu ao edil a ameaça que ouviu. Horácio Melgaço mostrou-se desagradado
com a impertinência do saloio. Sabia quem era ele. Será que o meu filho deixou algum rasto que o comprometa?, receou. Desta
vez, recebeu-o e logo se inteirou da malfadada situação: o filho seduzira e engravidara
uma donzela na flor da idade, que fizera recentemente dezasseis anos, e o pai da
infeliz viera reclamar
responsabilidades. Joaquim Santos reivindicava que João Carlos e Celina casassem
rápido antes que a barriga denunciasse a vergonha.
O autarca mantinha-se imperturbável, porém, sabia que essa notícia o
prejudicaria. Se fosse divulgada, os inimigos políticos usá-la-iam contra si e
as consequências do escândalo seriam imprevisíveis. Pretendia recandidatar-se
ao terceiro mandado e a fábrica de produtos alimentares já tivera dias melhores
– necessitava de manter-se no comando da Câmara Municipal para (poder) reerguer
a própria empresa; era imperioso vencer as próximas eleições. Os seus opositores
jamais suspeitariam que João Carlos engravidara uma chavalita menor de idade e
abandonara-a à própria sorte. Não permitiria que esse escândalo o arruinasse, porém,
também não lhe agradava a ideia de casar o filho com uma pastora de ovelhas. Decidiu
cortar o mal pela raiz sem quaisquer escrúpulos.
— O
meu filho não casará com a sua filha. Ele já não vive em Vila Rica. Viajou para
Coimbra e só regressará depois de se formar em Medicina. Mas vamos resolver a
situação da melhor forma, sem prejudicar ninguém — declarou com firmeza,
estendendo o cheque que acabara de preencher.
— Que
é isso? — bufou Joaquim Santos, antevendo a intenção implícita e sub-reptícia
do autarca. — Pede-me para... Não, não! De maneira nenhuma! Não vou cometer um pecado
desses perante Deus, nem vou para a cadeia. Isso é crime! Sabia, Sr. Bagaço? Posso
não ser instruído, mas não sou burro.
— Sim,
é verdade! A interrupção voluntária da gravidez ainda não foi despenalizada —
reconheceu Horário Melgaço, procurando usar a diplomacia para levar a água ao
seu moinho. — No entanto, sei de uma clínica privada em Espanha que tem bons
profissionais e oferece excelentes condições. Vou providenciar-lhe o endereço. A
sua filha não correrá riscos. Pode acreditar, Sr. Joaquim! Além disso, este
cheque cobre todas as despesas da clínica e da viagem, e ainda lhe sobrará
dinheiro. Pegue!
O
camponês sentia-se indignado. A proposta do Presidente era monstruosa, desumana.
Todavia, leu o montante escrito no cheque e arregalou os olhos. Dez mil euros é muita guita! Ciente de
que Horácio Melgaço jamais consentiria no casório dos respectivos filhos, tentava
raciocinar... Deus me perdoe, mas dá para
levar a Celina em segredo a Espanha, fazer o que tem de fazer e voltar para
casa sem ninguém desconfiar. O Bagaço tem razão. E sobrará bastante dinheiro...
Diante de tão generosa oferta, Joaquim Santos largou a sala do Sr. Presidente
com o rabo entre as pernas e o cheque no bolso.
Regressou
à aldeia, taciturno. Deglutiu o jantar amordaçado por uma mudez inabitual e calado
desabou na cama, esgaravatando na mente o melhor modo de convencer a mulher da
necessidade de levarem Celina a Espanha. A esposa estranhou o silêncio, mas não
ousou questionar-lhe as decisões no tocante ao futuro da filha. Somente no dia
seguinte, enquanto almoçavam, Joaquim Santos revelou:
— O
canalha miserável que te emprenhou foi embora. Judiou de ti e partiu de Vila
Rica.
— O
João Carlos partiu? — inquietou-se Celina, surpresa. — Quando? E para onde, meu
pai?
— O
Bagaço mandou-o para Coimbra. Só voltará a Vila Rica com o diploma de médico nas
mãos.
—
Então... ele não vai casar... comigo? Não acredito, meu pai! O João Carlos
ama-me...
— Aquele
patife gostava era das cambalhotas que deu contigo, minha parvalhona. És tão burra!
—
Ai, Joaquim, não fales assim — interveio Dona Henriqueta. — A Celina é ainda
uma criança.
—
Qual criança, Henriqueta! Vamos mas é resolver a coisa antes que lhe apareça a
barriga.
—
Que dizes, homem de Deus? — assustou-se a esposa. — Pretendes fazê-la abortar?
—
Não, meu pai! — suplicou Celina, apavorando-se. — Por favor, deixe-me ter o meu
bebé...
—
Cala-te! Quem manda sou eu! Estás prenha e solteira! Queres ficar mais desonrada?
Nenhum homem casará com uma rapariga que se refastelou nos braços de outro gajo!
Vamos tratar do assunto enquanto é tempo. O povo não sabe da nossa vida,
ninguém desconfiará. Iremos a Espanha consertar a tua borrada. Mais tarde,
casarás com um rapaz honesto que te saiba respeitar...
Gerou-se
uma acesa discussão em torno da refeição, Celina implorando misericórdia até se
resignar à intransigência paterna, Dona Henriqueta temendo a ira divina por destruírem
o embrião de um novo ser humano, até o homem dar a questão por terminada. Nesse
momento, bateram à porta...
***
Belmiro
Santos era um homem divorciado de trinta anos de idade, filho do irmão do avô
paterno de Joaquim Santos. Retornara há dois anos do estrangeiro, após
recuperar-se do grave acidente de trabalho que sofrera e ser generosamente
indemnizado. Estabelecido em Mourisca da Beira, o município mais próximo para além
da Serra Mourisca, levava uma vida desafogada. Enquanto aguardava que as obras
do restaurante que planejava abrir terminassem, auxiliava a sua irmã Carminda no
talho que ela geria. Por isso, deslocava-se amiúde a São Bertinho para comprar
borregos, coelhos e galinhas ao primo Joaquim. Suspirava de amor por Celina,
todavia, o parentesco e a larga diferença de idades inibiam-lhe qualquer
iniciativa, mantendo a paixão platónica trancada a sete chaves no coração.
Naquela tarde, porém, uma súbita reviravolta renovou-lhe a esperança. Antes de
lhes bater à porta, ouviu cada palavra da discussão familiar sobre a gestação
de Celina cujo drama lhe trouxe um sorriso aos lábios...
Joaquim
recebeu-o com um abraço e Belmiro quis falar-lhe em particular. Então, pediu
Celina em casamento. Confessou o sentimento que nutria pela jovem e garantiu
que assumiria como seu filho a criança que ela trazia no ventre. Joaquim Santos
demorou a refazer-se da surpresa, mas abraçou o genro que lhe caíra do Céu.
Entraram na sala e anunciaram a boa-nova. Celina tremeu, porém... João Carlos
não dava sinal de vida e agora, sabendo que ele partira para Coimbra sem dela
se despedir, sentia-se enganada, profundamente magoada; após tantas juras de
amor, não conseguia compreender os motivos da sua rejeição. Por outro lado, ninguém
mais sabia que ela engravidara... Belmiro tornou a declarar-se apaixonado,
desta vez à própria Celina. Ela hesitava... Unindo-se a Belmiro em matrimónio, qualquer
ténue esperança de reencontrar João Carlos dissipar-se-ia por completo; mas
também desejava salvar o filho que gerava no ventre. Visto que o pretendente
agradava aos seus pais, aceitou. Marcaram o casamento para o início de Setembro
e Celina foi-se refazendo da decepção que João Carlos lhe causara à medida que
o noivo, um homem ainda charmoso, se bem que menos jovem, menos bonito e menos
elegante que o jovem Melgaço, a cortejava seriamente. E Joaquim Santos,
satisfeito, fez questão de usar o cheque que recebera com o objectivo de
financiar um acto criminoso para pagar a boda da filha.
No
mês seguinte, Celina estava casada e partiu com o marido para Mourisca da
Beira. Outro mês volvido e Belmiro abriu o restaurante. E dir-se-ia que Celina
foi uma boa fada que entrou na vida desse homem porque (ajudando-o) fez o restaurante
arrolar-se num maravilhoso período de prosperidade. Belmiro seguia cada passo
da gravidez da amada esposa. Quando ela deu à luz, honrou o compromisso de
registar o menino como seu filho. Quanto a Celina, superou a desilusão amorosa
provocada por João Carlos e aprendeu a amar o marido. Nos anos vindouros, geraram
mais duas crianças sadias... O casal amava-se, vivia na mais perfeita harmonia
e gozava, sem qualquer ostentação, os seus haveres.
Belmiro
Santos era um negociante astuto com alma de cigano e bastaram sete anos para
enriquecer. Começou por investir no restaurante; depois comprou o principal
albergue da vila e conquistou, num golpe de sorte, uma boa parcela de quotas na
fábrica da família Melgaço sediada em Vila Rica. Doravante, o falecimento de
Horácio Melgaço possibilitou-lhe adquirir as restantes quotas, tornando-se o
único sócio da empresa. Passou a desdobrar-se entre as duas localidades:
durante o dia geria a fábrica em Vila Rica; à noite orientava a esposa, seu
braço direito, na gestão dos negócios em Mourisca da Beira. Transcorrida uma
década após a partida da aldeia de São Bertinho, Celina Santos e o marido eram
os empresários mais considerados e lisonjeados... quer em Mourisca da Beira,
quer em Vila Rica.
***
João
Carlos, após partir para Coimbra, cumpriu a rigor as ordens do progenitor.
Jamais olvidou a sua amada pastorinha: sentia saudade da sua candura, do amor
dedicado, da entrega incondicional. Ansiava tornar a vê-la na Serra Mourisca,
banharem-se juntos no Rio Luzio, amarem-se com paixão na praia fluvial.
Todavia, receando que o pai cumprisse a ameaça de o deserdar, não se atrevia a
retornar a Vila Rica até que a sua presença fosse requisitada. Dedicou-se ao
curso de Medicina e apresentou resultados satisfatórios nos semestres iniciais.
Horácio Melgaço, orgulhoso, autorizou-lhe o regresso. Então, João Carlos,
ignorando os acontecimentos de São Bertinho, retornou discreto, na sua Harley-Davidson, às estradas da Serra
Mourisca. Procurou Celina em todos os lugares, nunca a reencontrou. Espiou a
casa dos Santos, nem sinal da amada. Verificou, intrigado, que as ovelhas eram
agora pastoreadas pelo Sr. Joaquim e quis indagar o que sucedera. Estaria
Celina doente? Os moradores da aldeia observavam-lhe a inquietude, o desespero
camuflado. Se buscava alguma informação sobre Celina na taberna, era brindado
com risos trocistas. Rapidamente compreendeu que algo grave ocorrera e não
sossegou enquanto não descobriu o quê. A revelação foi-lhe desferida como um
punhal por Dona Henriqueta:
— A
minha filha casou com um grande homem, um senhor de muito respeito!
— Isso
não é verdade, Dona Henriqueta — volveu João Carlos. — A Celina não seria
capaz...
Desejosa
de ver aquele rapaz audacioso pelas costas, Dona Henriqueta entrou em casa e
retornou com as fotografias do casamento na mão. Escarrapachou-as na cara
atordoada de João Carlos. E receando que ele fosse importunar a filha em
Mourisca da Serra, rematou sem piedade:
—
Depois do casamento, a Celina e o meu genro partiram... para o estrangeiro!
João
Carlos ficou destroçado. A minha querida
Celina partiu para o estrangeiro com outro homem? Não pode ser! E tudo por
culpa daquele monstro que se diz meu pai... Surgiu em casa alterado, totalmente
insano, com ganas de estrangular o pai. Não o viu. A revolta corroía-lhe o
âmago. Pegou na mochila, zarpou na Harley-Davidson
a toda a velocidade para Coimbra e explodiu a angústia nos braços do tio
Herculano. O septuagenário, consternado, tentava reconfortá-lo. Em vão. O pobre
rapaz, dizimado pela dor da perda, soluçava num desespero dilacerante. Desorientado,
jurou vingar-se.
A
partir desse momento, a palavra de ordem era afrontar o todo-poderoso Horácio
Melgaço. Largou o curso e deixou-se enveredar por submundos menos lícitos, até chafurdar
na podridão. Não tardou a livrar-se do pai tirano que o sufocava: Horário
Melgaço faleceu logo após vencer o terceiro mandato na Câmara, vitimado por um
enfarte fulminante. Legou-lhe a empresa endividada e a vivenda hipotecada. Não
obstante, João Carlos herdou uma razoável fortuna em dinheiro. Abandonou
definitivamente a universidade e converteu-se num libertino. Passou a viajar, ocupando
o tempo em casinos. Quando não se divertia nos casinos, entretinha-se em motéis,
cabarets e bares de alterne,
coleccionando aventuras amorosas que nada significavam para si: mulheres de
qualquer idade, raça, nível social ou estado civil. Desfrutou de todas, mas não
amou uma única, e nenhuma decerto o amou; nisso, ficavam empatados. Tinha em
mente apenas o prazer imediato e pouco duradouro das orgias desregradas, e por não
ser duradouro é que era prazenteiro, portanto urgia prolongá-lo em loucas noitadas,
festas e motéis.
Após
a morte de Horácio, Herculano Melgaço rumou a Vila Rica, para administrar os
bens que João Carlos herdara. Embora benevolente, o ancião via no sobrinho somente
um bon-vivant... o playboy inconsequente que jamais se
interessaria por coisas enfadonhas como um escritório, uma sala de reuniões, as
minúcias de um contrato. Assumindo a gerência da empresa, cuidava-lhe de tudo; todavia,
arcaboiço não teve para salvar a fábrica de uma iminente falência. Obtendo o
aval do sobrinho, vendeu ao sócio minoritário as quotas que possuíam, liquidou
as dívidas e destinou o restante dinheiro ao herdeiro. Não conseguiu, igualmente,
resgatar a vivenda penhorada. Isso pouco importou a João Carlos: desde que
tivesse dinheiro estava tudo bem. E assim, o seu património foi sendo delapidado.
Contudo, não se inquietou enquanto o tio viveu. Mas como a velhice o conduzisse
à morte, mais cedo ou mais tarde... a bancarrota do rapaz começou a partir do
dia em que o tio Herculano foi sepultado.
Quando
a situação financeira lhe ruiu por completo, João Carlos tinha trinta e dois
anos, mas parecia um quarentão. Adoecera e envelhecera demasiado. Já sentia o
corpo dilacerado pelas moléstias e após ver as suas finanças arruinadas pelo
desregramento conheceria o amargo sabor da miséria. Deu consigo na triste condição
de homem destruído que fizera da sua vida um evento contínuo de futilidades;
depois de ter vivido à grande e à francesa, nada lhe sobrou. O balanço final
que efectuou mostrava apenas o ilusório, o vazio da sua existência: um presente
sem futuro e o passado cinzento, opaco, sem brilho nem qualquer importância,
sobretudo sem alegria. Não obstante a desgraça que o vitimara, João Carlos
mantinha nas suas recordações algo doce cuja memória rebrilhava como um
diamante, e isso bastava para que ele não tivesse desperdiçado totalmente a
vida: a sua amada Celina que jamais olvidou.
***
Naquele
ano de eleições autárquicas, Novembro chegou faustosamente assombroso. Ventos gélidos
em dias de Outono apresentavam-se mais glaciais do que no Pólo Norte, fazendo
as peles expostas dos candidatos queimarem de frio e os cachecóis esvoaçarem de
forma medonha. Celina acompanhava o marido nas campanhas eleitorais de Mourisca
da Beira, depois enfurnava-se no seu palacete, envolta em cobertas de lã ao redor
da lareira e não raras vezes fustigada por pensamentos impertinentes. Neste sábado,
o Telejornal noticiava um acidente
nos arredores de Mourisca da Beira. Um camião que transportava uma carga
inflamável despistou-se num cruzamento e embatera num edifício gerando o caos:
explosões medonhas provocavam chamas gigantes, labaredas esvoaçantes ameaçavam
lamber casas contíguas e as viaturas eram forçadas a parar. Incomodada, Celina desviou
os olhos do televisor. Foi até uma janela e fitou a rua sossegada. Chamas
inquietas bailavam à sua frente num barulho ensurdecedor cujas espessas fumaças
enegreciam o céu; pensamentos tortuosos e imagens alaranjadas eram inoculadas
na sua mente através daquele estranho cheiro algo familiar. Um espectro desfigurado,
fantasmagórico, repleto de fuligem surgia das entranhas do incêndio; apontava
enormes e pavorosas unhas negras, implorando piedade. «Meu Deus!», gritou
Celina, aterrorizada. O marido perguntou o que se passava. Ela só repetia «Meu
Deus, Belmiro! Temos de o salvar». Ele correu para a esposa, inquirindo de novo
o que ocorrera. «O fogo! As chamas! Aquele homem!», balbuciava Celina,
paralisada. Belmiro observou a rua tranquila, nada vislumbrou. Abraçou a mulher
e ela despertou do devaneio, estremecendo e sacudindo a cabeça. Súbito e estranhamente,
o cheiro sumira, o nevoeiro dissipara, as chamas infernais evaporaram. Olhou de
novo para a rua: automóveis estacionados nas bermas e os prédios da frente mantinham-se
intactos. Apontando para o outro lado da rua, murmurou:
—
Desculpa, Belmiro, foi só uma impressão. Um pressentimento ruim. Estas casas da
frente eram engolidas por um mar de chamas e alguém implorava a minha ajuda.
—
Quem era? — quis saber Belmiro enquanto ela divisava, lá mais adiante, um vulto
maltrapilho.
—
Não consegui reconhecer, mas era uma imagem familiar, bastante real.
—
Ficaste impressionada com as notícias que vimos na televisão.
—
Não, Belmiro! Foi uma visão muito nítida, talvez uma premonição...
Voltaram
para o sofá. Pouco depois, ouviram uma zaragata na rua, que atraiu Celina
novamente à janela. O marido acompanhou-a. Lá fora, o maltrapilho indistinto que
vira minutos antes a cambalear no fundo da rua, achava-se agora em frente à sua
casa. Cambaleando, de garrafa na mão, era alvo de chacota de três adolescentes
mal-educados que escarneciam da sua desgraça.
—
Meu Deus! O Filipe está a bater no pai! — gritou Celina, horrorizada, revendo,
estupefacta, nesse maltrapilho sujo e esfarrapado o vulto que visualizara nas
chamas a implorar ajuda. — Que educação é essa, Filipe? Deixa esse homem em
paz! Vem já para casa! E vós também, ide para as vossas casas!
—
Que disseste, Celina? — inquiriu Belmiro enquanto ela ralhava com os
adolescentes na rua.
—
Aquele homem... aquele infeliz... aquele pobre coitado... é o pai do Filipe. — Mais
do que um vulto indistinto, Celina reconheceu, surpresa, que aquele desgraçado
era o amor da sua juventude, que partira há quinze anos de Vila Rica sem deixar
rasto após plantar-lhe a semente de Filipe no ventre.
—
Que dizes, mulher? O pai do Filipe sou eu! — retorquiu Belmiro, sem entendê-la.
Vendo-a tão comovida, suspeitou que Celina conhecesse o pobre diabo e
interrogou: — Quem é esse mendigo?
Ainda
transtornada por ter visto o filho a bater no próprio pai, Celina continuava a
fitar João Carlos, que seguia tropeçando rua fora e caiu lá mais adiante, junto
ao portão aberto de uma garagem. Não lhe fazia sentido como é que ele se
deixara degradar tanto. E como foi parar a Mourisca da Beira naquele estado
miserável? Que desgraça lhe teria sucedido? Virou-se para o marido, de lágrimas
nos olhos.
—
Aquele homem, Belmiro... é o João Carlos — balbuciou, emocionada. — É o homem
que fugiu de mim há quinze anos, deixando-me grávida, sem nunca dar a menor
satisfação.
— O
Filipe é meu filho! O meu primogénito! Desde o dia em que casámos! — frisou
Belmiro.
—
Bem sei, Belmiro. E tu sempre foste um bom pai para ele, nunca o diferenciaste
dos outros filhos. Só quis dizer que o João Carlos é o pai biológico, o homem
que o gerou. Antes de casarmos, sabias que eu tinha sido namorada de um
miserável que fugiu de mim para obedecer uma intimação do pai...
—
Sei perfeitamente quem é. João Carlos Melgaço, filho de Horácio Melgaço, meu
antigo sócio.
—
Ele mesmo. E agora está ali, derreado naquele portão, dormindo ao relento...
—
Pois olha, minha querida — sussurrou Belmiro. — Tens agora uma boa ocasião de
te vingares.
— Quê?!
Queres tu melhor vingança do que esse estado miserável a que ele foi reduzido?
—
Certamente que pretendo algo melhor, Celina. E, se me dás licença, agirei por
ti.
—
Faz o que quiseres, Belmiro. Mas, por favor... não lhe faças mal. Já basta a
sua desgraça.
— Muito
pelo contrário, Celina! — exclamou o marido, enigmático, saindo para a rua.
***
No
dia seguinte, quando João Carlos despertou, achava-se comodamente deitado numa
cama limpa e tinha diante de si um indivíduo desconhecido. Era Mário, um homem de
confiança de Belmiro Santos.
—
Onde estou eu? Que casa é esta? — resmungou João Carlos, desnorteado. — Quem é
você?
—
Não se importe comigo — volveu Mário, sorrindo. — Levante-se e vá tomar um
duche.
João
Carlos, estupefacto, não compreendia o que lhe sucedia. Deixou-se levar como
uma criança para a casa de banho. Tomou banho, vestiu roupas novas, foi
submetido à tesoura e à navalha de um barbeiro e almoçou como um príncipe. Após
tudo isso, Mário levou-o para a empresa de produtos alimentares que outrora lhe
pertencera, em Vila Rica, onde ficou empregado por ordem de Belmiro. Antes de
se retirar para as suas funções, porém, Mário deu-lhe algum dinheiro e avisou:
— O Sr.
João Carlos Melgaço fica empregado nesta fábrica até ao dia em que torne a
beber. E pode morar no nosso apartamento por algum tempo, até criar condições
de arranjar um poiso para si.
—
Mas a quem devo eu tantos benefícios? — quis saber João Carlos, profundamente
intrigado.
— A
uma pessoa que se compadeceu do Sr. João Carlos Melgaço e deseja manter-se
incógnita.
João
Carlos atribuiu a sua sorte a algum velho amigo do seu pai. Parou de beber
álcool, meteu juízo na cabeça, agarrou a nova oportunidade com unhas e dentes, não
é mau funcionário e há-de morrer sem nunca ter sabido que a sua regeneração foi
a vingança de Celina, o amor que abandonara na juventude.
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in «Ei-los Que Partem!», páginas 118-131
Papel D'Arroz Editora, Junho 2015
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in «Ei-los Que Partem!», páginas 118-131
Papel D'Arroz Editora, Junho 2015
Esta publicação tira todo o interesse em comprar o livro ...Mas a minha opinião vale o que vale....Gostei de ler tem bom dialogo ..
ResponderEliminarGrato pelas suas palavras, Maria Silva. O livro «Ei-los Que Partem!» é uma colectânea que resultou de um concurso literário e foi publicado no início de Junho. Reúne 64 textos diferentes, entre grandes e pequenas histórias e também alguns poemas (de 64 autores); são quase 300 páginas! Não creio que a publicação da minha história neste blogue retire o interesse em comprar o livro. Pelo contrário: motivará a querer ler também os outros textos. Além disso, antes da publicação em livro, este conto esteve (e continua) publicado no blogue da editora. Fico contente que o tenha apreciado!
EliminarIsidro comecei a ler Celina e só parei no fim, não é normal acredita... Parabéns, adoro a forma como ironizas e brincas com os dissabores da vida... uma bonita lição... retribuir fazendo o bem, independentemente de o terem feito connosco!
ResponderEliminarUm excelente texto que peca apenas na mistura de uma linguagem mais erudita com a linguagem curriqueira do dia a dia, sendo que este pecado acaba por lhe conferir uma fluidez e até mesmo criar uma relação antagónica entre as diferentes personagens. Um texto magnifico que aborda os temas da partida e do abandono de forma subtil mas bem explicada. Continua com o extraordinário trabalho Isidro pois sem dúvida que vale a pena.
ResponderEliminarBelo texto, Isidro. A sua característica de optar pela descrição excessiva favorece a criação do "tempo e espaço" da trama por parte do leitor. Cada detalhe e cada personificação é abordada de forma harmoniosa com o contexto. A finalização, assim como na vida, nem sempre é a que esperamos. Parabéns.
ResponderEliminarAdorei o texto, prende o leitor à escrita! Parabéns.
ResponderEliminarTenho de te confessar, o Dilema de Celina remonta-nos às aldeias mais recônditas de Portugal, que eu acredito, na realidade (ainda hoje em dia) se passem assim, claro que através da tua escrita, nós os leitores, vivemos aquele dilema como se estivéssemos presentes lá na tasca do sítio. Parabéns amigo ;))))
ResponderEliminarAdorei Isidro, achei o máximo. Muito bem escrito e com alguma imaginação sua saiu este belo conto. Parabéns. Ex colega de trabalho. Ana Torres
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