PREFÁCIO
Uma discreta abordagem através das redes sociais,
felicitando-me pela narrativa que eu havia publicado numa obra colectiva de
outra editora, na Primavera de 2015, desencadeou uma cumplicidade literária que
se consolidaria nos meses subsequentes. A interlocutora interessava-se pela
minha obra e eu vislumbrei, rapidamente, que ela não era uma simples leitora
assaz curiosa: alimentava, de igual modo, sonhos literários. Encontrámo-nos,
meses volvidos, enquanto autores participantes, no mesmo concurso literário e o
texto de sua autoria atraiu-me. Desde aí, os meus olhos não mais se desviaram
do árduo percurso literário que, ela própria, viria a trilhar. Essa mulher é a
autora deste Almas Feridas que se
acha nas vossas mãos: Suzete Fraga.
No entanto, a luta para singrar no reino das letras por
espinhos se modelou. Embora já tivesse vencido o concurso promovido pela Rede
Concelhia de Bibliotecas Escolares da Póvoa de Lanhoso no ano lectivo
2011/2012, em que lhe foi atribuído o Prémio do Escalão Público em Geral para
maiores de 16 anos, o texto Tortura
Silenciosa, que Suzete Fraga apresentou no certame de 2015, deu nas vistas;
surpreendeu-me pela positiva e, em simultâneo, pela negativa. Narrava uma
estória arrepiante, espantosa, bem ritmada, de uma profundidade incomensurável,
que se lia de um fôlego, sem parar. O enredo envolvente transportava para
vários cenários, fazendo-nos vibrar e sofrer com a personagem que protagonizava
um drama bem real, terrivelmente actual: a violência doméstica e o sentimento
de posse. Um tema corrente, pungente, chocante, com um desenlace inesperado,
cuja estória relatada, agora compilada neste livro, alenta, infelizmente, para
o ânimo daqueles que dizem que o amor é um passaporte para a loucura, tornando
praticamente psicopatas aqueles que amam – ou acham que amam. Contudo, dela se
extrai uma lição de vida: temos de cercear impiedosamente os tentáculos
destruidores do amor, entre eles todas as formas de violência justificadas em
nome ou por causa desse tão nobre sentimento.
Embora o conto se apresentasse bem estruturado, bem
trabalhado pela capacidade narrativa da autora, com tramas bem encadeadas,
cujas peripécias se sucediam até ao clímax, o texto achava-se, na minha perspectiva,
um tanto maltratado. Um desleixo que apontei em conversa privada e a própria
autora reconheceria uma certa dificuldade nalguns pontos da escrita. Não
obstante esse pormenor que poderia
ser ultrapassado, mais cedo ou mais tarde, senti-me perante um diamante
literário (quase em bruto)... uma autora a ter em conta. A pedra preciosa só
precisava ser lapidada. Deixei, nos comentários ao texto, estas palavras: «Os
primeiros passos em direcção ao sonho começam bem. Continue a escrever!
Continue a aperfeiçoar o que escreveu! Nunca se aborreça de reler os seus
textos quantas vezes forem necessárias! Escrever para ser lido requer muito
trabalho e você tem capacidade para voar longe.»
Críticas negativas, todavia construtivas, que lhe dirigia
despertaram-na para a necessidade de adoptar cuidados específicos. E ela logo
me pediria para rever textos destinados a outros projectos. Eu revia e
continuava a criticar e a sugerir e a alertar. E ela sempre atenta... ansiando
tornar o próximo texto menos imperfeito. Nunca questionou a revisão num texto.
Ela própria comparava o trabalho que me enviara com o ficheiro (revisto) que
lhe era devolvido, buscando identificar pontos de melhoria. Esse profundo
interesse surpreendia-me mais ainda, desconcertava-me de um modo positivo; não
é comum um autor analisar o trabalho do revisor – geralmente, perguntam o que o
revisor fez, como fez, onde fez. Mas ela não. Ela pesquisava por iniciativa
própria, estudava minuciosamente o texto revisto, procurando compreender o que
deveria melhorar. Um esforço verdadeiramente louvável.
Em Agosto de 2015, tornara-se já a minha confidente num
universo literário bastante agreste em que todos se conhecem virtualmente mas,
na realidade, quase ninguém sabe quem é quem. Foi a primeira pessoa a ter
conhecimento da minha intenção em organizar uma obra colectiva. Quando tornei
público o regulamento de A Bíblia dos
Pecadores, antologia inaugural da Colecção Sui Generis, ela já era
conhecedora da essência desse projecto, no qual participaria com um drama
marcante, inspirado no relacionamento dos bíblicos Caim e Abel: Sombras do Passado; assim como enviaria,
logo após, Tentação de Natal, um
texto mais descontraído adentrando (um pouco) no campo da sensualidade, para a
minha segunda obra colectiva. Se Tortura
Silenciosa, em que muitas mulheres se revêem na ilusão associada à bondade
e ao amor que modificou a vida da protagonista, denuncia o flagelo da violência
doméstica, os temas predominantes nestas duas últimas narrativas – igualmente
reunidas neste livro – envolvem, respectivamente, relações fraternas assaz
perigosas (entre irmãos conflituosos) e o drama do desemprego.
À medida que estas (e outras) estórias – todas elas
vivas, intensas, reais, plenas de humanidade – chegavam às minhas mãos,
verificava que eram contos coesos, estruturados, com personagens planas e
modeladas, bem caracterizadas, entrando-se facilmente nas narrativas e nos
temas escolhidos, visionando-se cada cena, cada emoção, como se de filmes se
tratassem. Apresentando sempre uma escrita (cada vez mais) escorreita e fluida,
as tramas narrativas entremeadas de excelentes momentos descritivos destilam
uma pluralidade de emoções, de esperanças e, em maior número, de frustrações
(caso de Tortura Silenciosa), como
resultado de uma violência doméstica execrável e devoradora de seres e de
vontades, cujos desenlaces nem sempre são os esperados; mas que prendem o leitor
até à última linha.
Se eu notava progressos de texto para texto, a autora
jamais me questionou sobre a qualidade dos mesmos. Após enviá-los, limitava-se
a aguardar uma opinião. Um simples elogio, por mínimo que fosse. Embora a
evolução fosse notória, nunca elogiei (até aí) qualquer texto. Receava que ela
se acomodasse ao patamar que já atingira – e a caminhada tinha de prosseguir
nesse bom ritmo. Justamente por isso, ao invés de lhe transmitir elogios,
espicaçava-a, apontando imperfeições a corrigir, arestas a limar, novas dicas a
explorar e outros pormenores de suma importância que passam imensas vezes
despercebidos e requerem atenção redobrada. Como, por exemplo, a questão dos
tempos verbais. E ela assimilou rapidamente que: não deve haver oscilações na
mesma frase, ou parágrafo; misturar presente e passado requer um domínio
absoluto na escrita; não pode deixar pontas soltas numa narrativa bem
desenvolvida e todos os factos têm de ficar explicados, por mais suspense que
se possa empregar. Mostrava-se atenta às sugestões, aos pormenores mais ínfimos,
ansiosa por continuar a enriquecer a bagagem do conhecimento. E a mesma
ansiedade sempre presente... uma ansiedade muda, esperando somente um pequenino
elogio. Mas a minha opinião, embora de um modo subtil, era favorável e a
crítica, ainda que nalgumas vezes negativa, deveras construtiva. Recusava
elogiá-la por opção, porque desagradar-me-ia vê-la adormecer à sombra da bananeira – sim, receava que
tal sucedesse. Num curto espaço de tempo, evoluíra a um ritmo alucinante e as
suas asas poderiam voar ainda mais longe. Como, de facto, voaram! Eu sentia que
conseguiria mais; muito mais. E conseguiu!
Não atingiu a perfeição – nem mentes brilhantes
galardoadas com o Prémio Nobel conseguem ser perfeitas. Não obstante, chegou ao
ponto de vencer, em Novembro de 2015, um (novo) concurso literário; quiçá mais
ambicioso e mais concorrido, em relação ao anterior; desta vez, com uma
narrativa bem amadurecida, sagrando-se vencedora, por mérito próprio. Antes de
a entidade promotora divulgar os resultados, eu tinha a convicção de que Até à Última Gota... se não vencesse,
ficaria, no mínimo, entre os principais classificados. Classificou-se em
primeiro lugar. Uma vitória justa. Merecidíssima! De uma autora humilde e
dedicada, que tanto penou para atingir esse feito. Só aí me pronunciei –
finalmente! – sobre o talento inquestionável de Suzete Fraga. E ela compreendeu
o meu silêncio durante toda a sua trajectória, a ausência de elogios enquanto
progredia e que estes nem sempre se revelam favoráveis aos melhoramentos. Por
vezes, uma crítica negativa, desde que construtiva, é mais benéfica,
contribuindo de modo positivo para a nossa felicidade.
O conto Até à
Última Gota, incluído igualmente neste livro, é outro drama fascinante,
deveras viciante, que afecta inúmeras famílias e faz verter uma lágrima rebelde
durante a leitura; arrebata da primeira à última linha e devora-se, num misto
de raiva e encantamento, de um fôlego. Descreve outra situação recorrente que
podia ser banal, porque envolvendo os malefícios do álcool, tanto na ficção
como na realidade, há imensas estórias comuns. No entanto, graças ao estilo realista
da autora, que enfatiza o aspecto humano e sofredor da protagonista, com
nuances de revolta e coragem, usando o diário dentro da narrativa, o texto enriqueceu
sobremaneira, relembrando que a escrita é muito mais do que escrever – pode ser
também uma viagem ao mais profundo de cada um de nós, uma descoberta pessoal –
e resultando numa ficção com muitas verdades lá incluídas, com uma clareza e
fluência de ideias que sensibiliza o comum dos mortais.
Após triunfar no concurso de 2015, as narrativas sucedem-se.
Cada vez mais estimulantes, ousadas, vibrantes. A própria autora, confrontada
com o peso da responsabilidade, manteve a preocupação por uma evolução
contínua, cujo trabalho tornou a ser reconhecido, noutro certame regional, no
início deste ano. E todos os seus textos, reunidos neste volume, passaram-me
pelas mãos. Conheço-os como se fossem meus. Revejo-me na maioria deles. Kayla: Sede de Vingança, só para citar
um exemplo, concebido para a antologia O
Beijo do Vampiro, tem um sabor especial: poderia ter sido escrito por mim.
Narra a odisseia de uma vampira sedenta de vingança, escravizada antes de ter
sido transformada, com mais de duzentos anos de idade, fazendo que o enredo
viaje pelos séculos; a minuciosa pesquisa histórica (escravatura, por exemplo)
enriquece a trama, confere-lhe maior credibilidade. Este texto poderia ter sido
escrito por mim, todavia, não é o caso. Redigiu-o uma alma sensível e maravilhosa
em quem muito me revejo que, independentemente do meio geográfico (bastante
limitado) em que se encontra inserida e das adversidades (não poucas) que têm
vandalizado (de modo assaz feroz) a sua trajectória literária, muito tem
pugnado pela concretização do sonho.
À semelhança das suas personagens, a autora de Almas Feridas é uma alma igualmente ferida,
num (pequeno) universo editorial que se deseja verdadeiro. Mais honesto. E
solidário. Não absorveu influências nefastas nem se permitiu corromper por
poderes (menos transparentes) instituídos, tão-pouco se deslumbrou com
presentes envenenados ou se deixou beliscar por situações que raiam o absurdo.
A sua integridade, mesmo perante falsidades e enxurradas de ácido contra si
disparadas, permaneceu inviolável; as convicções inabaláveis. Mantendo-se
autêntica, igual a si mesma e fiel aos seus valores, prefere rejeitar um troféu
literário conquistado a duras penas para conservar a dignidade. Abdicar do
prémio que ganhara em 2015 (edição gratuita de um livro) revelou-se um acto de
coragem. Mas também um grito de revolta. Um grito de liberdade.
No entanto, o sonho não esmoreceu. Pelo contrário! As
adversidades reforçam desejos. Mesmo remando contra ventos e marés, enfrentando
raios e trovões, fazendo das tripas coração, a autora jamais desistiria do seu
sonho. Quando resolveu concretizá-lo recorrendo aos próprios meios, eu assumi,
com um especial prazer, o apoio incondicional à realização deste sonho há muito
sonhado cuja gestação foi verdadeiramente sofrida.
A edição de Almas
Feridas tornou-se para mim, enquanto editor e amigo solidário, uma questão
de honra. Porque a luta é igualmente minha e considero o livro, embora não me
pertença, outro dos meus filhos. E
ei-lo agora nas vossas mãos! Almas
Feridas. O primeiro parto literário de uma autora resiliente cuja vida
sempre viveu em meios menos privilegiados, onde impera a escassez de
oportunidades. Sendo, também, uma das primeiras obras individuais da Sui
Generis, criada no meio de uma forte tempestade, bem turbulenta, que Suzete
Fraga ajudou a enfrentar. Almas Feridas
é editado na mesma fornada de Amargo
Amargar, obra que marca, de modo similar, a realização de outro sonho: da
pessoa que redige estas linhas. Dois percursos paralelos, duas lutas sangrentas, duas quimeras realidade
tornadas. De mãos dadas. Em simultâneo! Isso demonstra que, havendo força de
vontade, tudo se consegue. Basta querer! Haja luta e perseverança! Nunca se
desista do objectivo, por mais sombrio que se apresente o horizonte. Há que
transformar sonhos em realidade! Porque a esperança é a última que morre – e
parar é sinónimo de morrer.
Este livro, cujo título reflecte magistralmente os
conteúdos, reúne dezenas de textos que a autora escreveu, em duas partes: na
primeira, contos destinados a concursos literários e obras colectivas de várias
editoras; na segunda, pequenas estórias, autênticos exercícios de literatura,
redigidas para campeonatos de escrita criativa em que a autora participou.
Todas as narrativas são criativas e as abordagens
geniais, dotadas de veracidade, um realismo que arrepia. Encantam, prendem,
deslumbram, emocionam. Envolvem o leitor em aprazíveis e elegantes teias de
aranha das quais só se liberta após ter digerido as derradeiras palavras.
Tramas marcantes, profundas, diversificadas, que confirmam o real talento e
versatilidade de quem as concebeu – um talento enorme, abundante! «São temas
cuja fonte é inesgotável, infelizmente», diz a autora. «Não requer pesquisas.
Na família, na casa ao lado, na rua mais abaixo, na televisão... basta piscar
um olho para surgir uma história. E, claro, nas minhas histórias, posso fazer
justiça ou dar o final feliz que raramente acontece na vida real. Por outro
lado, tenho uma leve esperança de poder ser uma influência positiva para quem
passa por estes dramas.»
É um facto: Suzete Fraga possui uma capacidade imensa de
expressar emoções através da escrita, de expor assuntos perigosos de uma forma
assaz deliciosa, de trabalhar qualquer tema com a beleza das suas palavras.
Cada estória é como um filho e todas elas são dignas de serem lidas, quer pelo
estilo único e cativante, quer pelos conflitos nos enredos, com temas para
temer a vida! Poderia analisar outras narrativas além das que citei, cuja
principal característica é sempre a dramaticidade – porque todas as pessoas
sofrem; todas as almas são feridas. O
Chamamento do Cipreste (texto recheado de superstições envolvendo o
sobrenatural) ou Têxteis: A Normalidade
da Anormalidade (aventura frenética no local de trabalho, de enlouquecer
qualquer ser humano), por exemplo. Privilegiei dar relevo ao percurso nada
facilitado da autora, para conseguir furar (também) a muralha de humildade que
lhe bafeja o espelho, cujo êxito agradece inclusive às pedras do seu caminho
(«Por cada calhau que me aparece à frente, surgem sempre dois ou três anjos
para o remover»), reservando as emoções ofertadas por cada “devaneio literário”
às vossas leituras. Que serão, seguramente, prazenteiras.
Isidro
Sousa
EDIÇÕES SUI GENERIS
Livraria: www.euedito.com/suigeneris
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