04 janeiro, 2016

MAU NATAL


Texto de FILIPE VIEIRA BRANCO
  
O meu nome é Baltasar e esta é a pior história de Natal que vais ler em toda a tua vida.
Mentira. O meu nome não é Baltasar, mas o resto é verdade. Este é o pior conto que se pode revelar a alguém. E não vou dizer-te o meu verdadeiro nome. Não posso. Nem interessa. O importante agora é ir tirar da cara esta maquilhagem que me deixa preto todos os dias. Sim, preto, com um ar africano, das arábias, sei lá. É daí que vem o nome Baltasar, como o Rei Mago que levou o incenso ao menino Jesus. Ou terá levado a mirra?
A água gelada, que corre da única torneira desta casa de banho imunda, interrompe-me os pensamentos quando choca contra a minha pele enegrecida pela tinta. Mas também pode ter sido ele a levar o ouro. Não sei. Ninguém sabe. Só sei que agora dava-me jeito algum ouro. As minhas mãos retraem-se com o frio da água e é forçadamente que esfrego a cara para me livrar deste disfarce de rei.
Rei? Um pelintra, assentava-me melhor. Mas talvez esse não fosse um verdadeiro disfarce, se pelintra é aquilo que realmente sou. E andei eu a estudar teatro durante anos para ficar com isto, condenado aos papéis que já ninguém quer. Cala-te, Rafael. Ganha juízo, sabes bem que isto nem sequer é um trabalho de actor. Qualquer um podia fazê-lo. Bem... acabei por te contar o meu nome real, não apenas o da realeza. Mas não faz mal. Fica assim. Afinal que mal poderás fazer-me com o meu nome?
O centro comercial já fechou; as luzes já diminuíram aquela intensidade que ofuscava; e já não há clientes, pois já todos fugiram apressados com as suas compras de última hora. Restam apenas alguns empregados e lojistas ansiosos para correrem para as suas famílias. Eu não estou ansioso. Já tirei a coroa, as vestimentas extravagantes e a tinta escura. Agora sou apenas eu, na minha aparente normal aparência.
Passo uma última vez perto do trono do Pai Natal e do Presépio, onde ainda há poucos momentos eu encarnava o tal mago Baltasar, que dizem ter sido um rei. A mim, agora que o conheço e bem, não me parece que fosse algum ser poderoso. Seria apenas mais um rico aborrecido que quis ver o famoso recém-nascido de perto. Eu também teria ido de propósito à gruta só para vê-lo com detalhe, mas dificilmente teria algo para lhe oferecer, para além do meu instintivo escárnio.
– Vais ficar? – anuncia uma voz atrás de mim. Só ao fim de alguns segundos é que percebo que esta era uma questão, uma pergunta.
– Não, não vou ficar. – declaro sem me virar para encarar o meu colega de trabalho, o Belchior. Para ser sincero, nem recordo mesmo o seu nome, devendo-se muito isto à extrema indiferença da sua existência perante a minha pessoa.
Não quero que me veja assim desfigurado. Quero dizer: sem estar vestido de rei. Portanto, apenas permaneço silencioso até ouvir os seus passos afastarem-se no eco do shopping vazio. Entretanto fixo os meus olhos no dourado tremeluzente de uma estrela que brilha por cima do presépio, concentrando-me nesta luz até que tudo à sua volta fique desfocado.
Passou não sei quanto tempo, mas foi o suficiente para enfurecer o segurança que vem avisar-me que tenho de abandonar o edifício. Estava completamente perdido na avenida das memórias, disperso por entre imagens dos anos anteriores, em que eu era sempre o Pai Natal. Odiava. Mas era mesmo um ódio de morte, de me levar a ficar durante horas a beber álcool pela noite dentro, nos bares mais baratos da cidade. Bebia e fumava. E quando o dinheiro sobrava, ainda conseguia arranjar alguma erva para acrescentar ao podre tabaco. Essa era a única forma de esquecer os risos maquiavélicos das criancinhas irritantes que se sentavam no meu colo a pedir presentes a um completo estranho que abominava as suas existências, tão curtas quanto enfadonhas.
E foi por isso que este ano decidi que não iria mais ser o Pai Natal de ninguém. Claro que ao escolher o papel de Baltasar, não esperei que se tornasse logo tão aborrecido a cada dia, com isto de estar tão mascarado. Os outros dois não têm nem metade do trabalho que eu tenho para me transformar naquele personagem. E ganham o mesmo: tão pouco quanto eu. Mas tinha de ser assim, pois precisava de um completo disfarce. Também foi por isso que mudei de cidade e vim fazer figuras tristes para um sítio onde ninguém me conhece. E, claro, há outro grande motivo, não diria razão, que justifica tudo isto. Mas não posso dizer-te já do que se trata. Não quero estragar-te já a surpresa. Tenho estado aqui a contar-te isto falando no presente, mas esta história aconteceu faz já algum tempo, por isso deixa-me ajustar aqui a engrenagem do meu complicado cérebro, para passar a falar-te no passado. Assim fará mais sentido.
Naquela noite, na véspera de Natal daquele ano, sentia-se um frio dos diabos. E eu não era, nem sou, religioso, mas dei por mim a pedir a Deus que me levasse algum calor; isto enquanto saía do centro comercial e encarava subitamente o ar congelante da rua, que em toda a sua extensão estava agora deserta. Pus as mãos nos bolsos e segui caminho, esperando encontrar algum café aberto àquelas horas da noite. Passava pouco das dez. Tive sorte. Encontrei uma tasca, que de início tresandava a vómito, mas que tinha um vinho bom e barato. E o seu interior era, apesar de tudo, quente e agradável. No pequeno espaço, só eu e o velho taberneiro por detrás do balcão. Umas luzes de múltiplas cores piscavam eufóricas atrás da sua cabeça, numa linha mais ou menos recta que se estendia luminosa à frente de algumas garrafas no expositor. Quando o brilho da luz intensificava, por alguns segundos, podia ver perfeitamente o amontoado de pó que ali se tinha juntado com o tempo. O vinho seco escorregava-me pela garganta, quanto concluí que aquelas luzes não estavam ali só para aquele Natal. Já tinham vivido e presenciado sabia-se lá quantas épocas festivas.
Para festas não estava o homem. Carrancudo, calado e de olhar pesado, não desviava a atenção da diminuta televisão que arrastava as chatas notícias do dia. Tradições de Natal e consumismo pareciam ser os únicos temas do momento. E foi mesmo por isso que aproveitei para iniciar alguma conversa.
– Então hoje não fecha a casa? – disse-lhe de rompante, ao mesmo tempo fazendo sinal para me reabastecer o copo de vinho.
– Enquanto houver clientes, não fecho.
– Mas não estava aqui ninguém antes de eu entrar...
– Tinha acabado de sair. – disse-me isto tudo como se fossem muitas palavras, sem nunca tirar por um único momento os seus olhos cansados daquele televisor. Parecia-me hipnotizado, o raio do homem, ou simplesmente estaria a fazer força para me esbofetear mais e mais com a sua indiferença, bem disfarçada de uma altivez aguda.
– Família, não tem? – atirei a picar, finalmente despertando a sua finita atenção na minha direcção, exactamente quando uma jornalista carregava o tom da voz e começava a falar de um homem que tinha assassinado a mulher. As notícias da época tinham aparentemente chegado ao fim.
– Tenho, tenho. Um filho – revelou o homem – mas só vou para lá à meia-noite, quando os netos abrem as prendas.
Parecia ter mesmo acordado o velho, por algum milagre.
– E você, não tem família? – continuou, pondo-se a lavar alguns copos num alguidar com água escura.
– Eu não tenho. Quero dizer... claro que tenho, mas estão todos longe.
– Filhos?
– Dois. E uma ex-mulher, que fugiu com eles para o norte, depois de nos divorciarmos.
– Grande novela. – cuspiu, entre uma tosse profunda que parecia arrastar-se há muito tempo.
– Diria mais “grande filme”, que isto de novela tem pouco. – e num trago bebi o vinho que já me parecia mais azedo.
Sem hesitar, voltou-me a encher a medida.
– Beba lá isso depressa, que quero fechar a tasca. – ordenou.
– E por acaso você pensa que me pode expulsar assim? – ripostei nervoso.
– Este... paga a casa. E reclame pouco, senão vai já para o olho da rua e sem o beber.
Nisto agarro no copo e, levantando o braço com violência, bebo tudo de rompante, como se fosse o último segundo que tivesse para o fazer. Ao deixar cair o braço, estilhaço o copo pelo balcão, abrindo de imediato uma pequena ferida na mão que o segurava. O sangue mistura-se com o vermelho do vinho. O homem sai de trás do balcão, parecendo ter ganho uma velocidade repentina, agarra-me pelo colarinho e arrasta-me até à porta, pontapeando-me contra a rua, devolvendo-me ao ar frio e fechando de imediato, só para si, o calor do estabelecimento, com um estrondo que por pouco não rachou a porta ao meio.
– Boa noite ó anormal! – gritei, sem certeza se me terá ouvido ou não.
A minha sorte foi que o efeito do álcool já estava a deixar-me anestesiado. E foi assim, meio adormecido, que caminhei sozinho pela rua comprida, novamente debaixo de um céu estrelado, que mal se deixava observar através de tantas luzinhas que piscavam por toda a parte, tentando forçadamente ornamentar algum tipo de felicidade que eu não tinha nem iria ter. Desgraçado, abandonado, mal-amado. Era esse o meu constante estado nos últimos meses. Não penses que estou a tentar fazer com que tenhas alguma pena de mim, pois quando souberes o que fiz não irás ter algum resquício de compaixão por mim. E não quero dar-te trabalho ao fazer-te gostar de mim para depois teres que passar a odiar-me. Mas não te conto já. Primeiro deixa-me explicar como é que acabei essa noite no quarto da minha pensão com uma prostituta.
Ia a descer a rua íngreme que levava à tal pensão onde tinha alugado um quarto recentemente. Barato, claro, como tudo na minha vida. Portanto, ia a descer a rua quando avistei uma figura exuberante, uma mulher de uns cinquenta anos que não estava disfarçada de algum personagem da quadra natalícia, mas que chamava tanto ou ainda mais à atenção do que eu com os meus trajes de rei santificado. Com a temperatura a roçar os zero graus, esta mulher tinha uma saia muito curta, desadequada e ornamentada com lantejoulas prateadas. Afirmo com clareza que o piscar das decorações da rua reflectia naqueles pequenos pormenores que assentavam terrivelmente nas suas pernas semi expostas ao gelo da noite naquela esquina. Por cima, a mulher estava mais tapada, com um casaco branco rechonchudo.
– Não tens frio? – perguntei naturalmente, ao parar diante da curiosa personagem.
– Se tens frio, aqueço-te eu. – foi directa ao ponto.
– Espera lá que já percebi... mas também trabalhas hoje? É véspera de Natal, pelo amor de Deus! – desabafei, sem certeza de se estava a lamentar-me por ela ou pela minha própria miserável situação.
– Eu sou patroa de mim mesma, sou eu que decido quando trabalho. E nesta noite há sempre algum solitário que quer companhia. Ganha-se o triplo. Vamos? Por cem euros faço tudo...
– Por tão pouco? – ri alto, sentindo novamente o efeito do vinho a subir-me à cabeça.
– Queres dar mais? Dá o que quiseres, filho.
– Mas pensas que eu sou o quê? Não preciso de pagar para ter companhia.
– Tens a certeza? Com esse bafo a vinho... – e com isto a mulher prendeu-me definitivamente, deixando-me obcecado pela sua frontalidade, pela forma como não tinha medo algum de confrontar-me com aquelas palavras amargas. De alguma maneira, ela estava a trazer de volta o realismo à minha vida, pelo menos naquele momento.
– Passa a noite comigo. Pago-te, mas tenho pouco.
– Quanto?
– Pouco mais de sessenta euros...
– Depende do que quiseres fazer.
– Falar. Só falar. – disse-lhe, sincero, despoletando nela uma gargalhada demoníaca, que parecia saída de algum filme de parca qualidade. – Ouve. Estamos só os dois, cada um abandonado à sua maneira. Não tem mal nenhum se fores comigo para a minha pensão... para falarmos.
Fitei-a de alto a baixo, jamais teria algum tipo de sexo com ela, pois parecia-me asquerosa, fisicamente falando. Nem o seu longo cabelo loiro era suficiente para lhe dar alguma beleza. Mas apetecia-me tê-la como companhia, e esse era apenas mais um dos meus estranhos desejos, que tantas vezes me tinham condenado. Tive que lhe dizer mais algumas palavras, que ornamentei cautelosamente, não querendo insultar a sua pouca inteligência, e finalmente a mulher lá se decidiu a ir comigo, talvez motivada por querer entrar num lugar mais quente.
O quarto da pensão cheirava a mofo, mas calculei que ela também não estivesse habituada a grandes luxos. Acendi o primeiro cigarro das muitas horas desse dia e deixei o fumo invadir o reduzido espaço, mesmo antes de a ouvir dizer:
– Não tens ideia de quantos já me disseram que queriam só falar, e que depois acabaram por fazer tudo menos conversar, por isso se queres é para passar já ao que interessa.
Começou a deslizar a saia para baixo, preparando-se para despir-se, mas a minha mão trémula parou-a a tempo.
– Senta-te, mulher. Não me sinto atraído por ti. És muito velha e feia.
Pelo menos deliciei-a com as minhas frontais palavras, dando-lhe a provar um pouco do seu saboroso veneno, que ela pareceu adorar, largando-se a rir enquanto se sentava na borda da cama.
– E tu estás sozinho porquê ó bonacheirão?
– A minha mulher deixou-me. Pediu o divórcio. E eu dei-lho.
– Então que é que tu lhe fizeste para ela se chatear? – disse já mais séria, acendendo também um cigarro, contribuindo de imediato para a nuvem de fumo que já se formava dentro do quarto.
– Meti-me nas drogas. Leves. Mas a cabra não gostava... e levou-me os filhos. – disse-lhe, mentindo na última parte, sem sequer desconfiar de que dentro de alguns momentos esta mulher iria ficar a saber toda a verdade de uma forma, literalmente, estrondosa.
– Eu acho que ela deixou-te porque tu metes medo, pareces maluco... – e fez um sinal com o dedo junto à cabeça, como que a carregar a expressão e a dar mais intensidade à sua pouco eloquente afirmação.
– E no entanto aqui estás tu no mesmo quarto que eu.
Foi então que aconteceu. Lembrando-o agora, parece que o vivi em câmara lenta. A luz do corredor, exterior ao quarto, acendeu-se. Ouviram-se passos apressados, de vários pés, várias pessoas. Ouviu-se o recepcionista da pensão a bater na porta, que tinha sido trancada por mim, pela parte de dentro, de uma forma que não pudesse ser aberta por fora. Soaram as doze badaladas da meia-noite, ao mesmo tempo que murros soaram contra a porta de madeira. A mulher, assustada, levantou-se para fugir. Percebeu que não tinha por onde escapar e levou as mãos à cabeça quando ouviu alguém gritar: “Polícia! Abre a porta!”. Eu relaxo-me, deixo-me descontrair, inspiro uma nova vaga de fumo, sinto o meu corpo receber o tabaco, como que a abafar os gritos da polícia do lado de lá. E em menos tempo do que esperava, a porta é arrombada; cai lentamente contra o chão, estatelando-se do nosso lado, aos pés da mulher que tremia como uma vara ao vento. Dois polícias, com ar de mauzões, entram pelo quarto adentro, agarram-me com força, algemam-me e recitam alguma poesia policial, pelo menos segundo o meu psicótico entendimento, mas nunca conseguem retirar-me o sorriso da cara. De facto, esse foi um dos raros momentos em que em todo esse tempo sorri com tanta satisfação. Encarei a mulher, antes de ser arrastado para fora do cubículo, e vagarosamente disse-lhe assim:
– Eu matei aquela cabra. Boas festas!
Teria pago, bem mais do que os míseros sessenta euros, para ver a cara de espantada que a mulher terá feito perante a minha confissão.
Eu avisei-te que esta era a pior história de Natal de sempre. Sim, matei a minha mulher, mesmo depois de lhe assinar os papéis que a livrariam de mim. Não sei por que a matei, se por impulso ou por premeditação, mas voltaria a espetar-lhe aquela caneta mais sete vezes na sua adorável garganta. Não suportava mais ouvi-la. Calei-a de vez, pelo menos. Nojenta. Já passou muito desde que fui preso. Estou há exactamente trinta e seis minutos de seguir para o corredor da morte. Hoje é o Dia de Reis. 6 de Janeiro de um ano qualquer e nem neste dia os carrascos tiram férias.
Mau Natal, companheiro.


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in «Boas Festas», páginas 70-78
Silkskin Editora, Dezembro 2015


NOTA BIOGRÁFICA DO AUTOR
Filipe Vieira Branco estudou Humanidades, seguindo depois para Ciências da Comunicação. As aulas de Guionismo e Escrita Criativa permitiram-lhe absorver técnicas para canalizar a sua criatividade. Em 2015 publicou o seu primeiro livro, «O Dia em que Nasci» (Capital Books), e participou numa colectânea da mesma editora. Está actualmente a participar num projecto do Serviço Voluntário Europeu, em Itália, tendo já realizado voluntariado também em Portugal, com associações LGBT. Declara-se um activista pela igualdade de direitos e ao mesmo tempo um sonhador que busca na escrita a plena satisfação. Publicou este conto, «Mau Natal», na antologia «Boas Festas».

1 comentário:

  1. Fantástico este "Mau Natal"! A dose perfeita de humor negro. É que não sei se devo rir, ou se devo chorar. Adorei! Muitos parabéns,Filipe! Espero encontrar -te no Beijo do Vampiro.

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