Texto de SÉRGIO SOLA
A vida... a vida, tal como a conhecia, mudou. A vida, tal
como a conhecia, mudou naquele dia. Aquele dia, algo distante no tempo, mas
muito presente nos meus pensamentos. Ah, os meus pensamentos... estes pensamentos
que não me largam, estes pensamentos que muitas vezes nos elevam, e outras
vezes nos destroem. Nos destroem por dentro, destruindo o melhor de nós.
Estes são os meus pensamentos, os pensamentos que me
trouxeram a esta situação...
Procurava, quase sem ver, algo com que pudesse
presenteá-los, com que pudesse fazer felizes os meus filhinhos. Sabia o que
procurava, ou melhor, tinha entrado naquela casa com um único pretexto. Havia
meninos naquela casa, havia meninos da idade dos meus. Havia meninos que tinham
a sorte que os meus perderam, que tinham a sorte que fora negada aos meus.
Brinquedos para lhes pôr nos sapatinhos, na noite de Natal, era o que procurava...
roubaria, naquela casa, brinquedos para dar alegria aos meus filhinhos. Era
isso que procurava. Não, nada de jóias, não, nada de dinheiro, não, nada de
riquezas, apenas o que tinha a certeza de que os faria felizes. Vivia para
eles, vivia em função deles.
Os meus dois meninos viam aproximar-se a noite de Natal...
não falavam de outra coisa... “Será que o Pai Natal se vai lembrar de passar na
nossa casa?”. “Papá, diz ao Pai Natal que não se esqueça de passar na nossa
casa, não se esqueça de passar na nossa chaminé...”.
Os olhos dos meus meninos brilhavam, brilhavam com aquela
ansiedade e generosidade de quem é menino, de quem é inocente. E, na minha
cabeça, foi-se formando este pensamento, este pensamento mau... Teria que
tratar de os fazer felizes, teria que tratar de os fazer felizes, pelo menos
naquele dia. Iriam ter um dia parecido com o dos outros meninos, iria fazer
isso, iria fazer isso pelo grande amor da minha vida, o amor que tinha aos meus
filhos. Aquele amor que é incondicional, aquele amor que, contra tudo e contra
todos, vence, vence em prol de algo grandioso, algo superior a nós. Vence em
prol do sucesso da humanidade, vence em prol da evolução da espécie, vence em
prol do que somos, do que ansiamos, do que vivemos e queremos viver...
Afinal, não somos, apenas e só, um conjunto de átomos que
se juntaram, aparentemente sem outro desígnio senão o de constituírem um ser
único, nós. Não, não somos, não podemos ser. Há algo mais alto, algo mais
elevado do que apenas isso. E isso é o Amor!
Não podemos ser apenas o que vemos, no nosso quotidiano.
Actos sem valores, sem ideais demonstrados, onde cada um apenas olha o seu
umbigo. Não podemos, não, não podemos ser apenas isto. Afinal o que é a
personalidade? De onde vem a personalidade? É apenas e só aquilo que está
escrito no nosso ADN? Afinal a evolução é apenas o que fomos aprendendo,
geração após geração, mais o que aprendemos na nossa? Ou o Amor é que entrelaça
todos os fiozinhos com que nos unem? Quero crer que é isto...
Aqui, nesta casa, e como um comum ladrão, procurava
brinquedos para dar alguma alegria a uma quadra festiva, para dar alguma
alegria aos meus pequeninos, uma vez que a mãe deles quase nega o amor que lhes
é devido. Mas... já vos falo nela... os meus olhos já estão rasos de lágrimas o
suficiente...
As lágrimas, a transpiração, os meus pensamentos,
toldam-me a vista... mas lá vou progredindo, aos poucos, ao longo da casa, da
casa rica de uma família abastada, de uma família feliz. Ou melhor, de uma família
que tudo pode dar aos seus filhos. De uma família que, se quiser, não deixará
faltar nada aos seus filhos... nem o Amor!
Ocupado com os meus pensamentos, não ouvi leves rumores,
não ouvi leves estalidos, leves pistas, que já indicavam que eu não estava sozinho
naquela casa. Absorto nos meus raciocínios, não percebi que a casa que antes
estava deserta tinha agora mais alguém, uma presença que ainda não se fizera
notar.
E eu, sem nada perceber, continuava a minha saga de
ladrão, a minha saga que me tirava a alegria, que me deixava exausto de
pensamentos sombrios... até que...
– Alto! Mãos no ar! O que faz na minha casa? Tenho uma
arma comigo, cuidado, não faça movimentos bruscos, serei obrigado a disparar! –
A voz forte e possante não deixava margem para dúvidas, dispararia mesmo.
Ao mesmo tempo, a luz da sala onde me encontrava
acendeu-se. Dei de caras com um homem impecavelmente vestido e, de facto, com
uma arma na mão.
– O que faz na minha casa? Vamos... responda! – A voz era
autoritária. Afinal, tinha razões para isso, eu encontrava-me dentro da sua
casa, à noite. Só podia ser um ladrão! O que, de facto, era!
– Senhor, por favor... não dispare. Eu vou
explicar-lhe... se me permitir. Se me permitir – ao dizer isto, não consegui
evitar as lágrimas. Imaginem a cara do senhor ao encontrar um ladrão em sua
casa, e um ladrão que, quando o viu, em vez de tomar uma acção ofensiva ou,
talvez, defensiva, não... fica a chorar.
O senhor ficou muito sério a olhar para mim, a olhar as
minhas mãos vazias. O seu olhar passeava dos meus olhos para as minhas mãos, e
voltava aos meus olhos. Queria perceber o que se passava.
– Bem... entrei na sua casa com o intuito de roubar. Não
vou mentir. Sou um ladrão, sim! – Dizendo isto, não consegui evitar a catadupa
de lágrimas, caíam quase em cascata e os soluços ameaçavam entrecortar as
minhas palavras.
O senhor continuava com olhar interrogador e sério...
mas, já menos em posição de alerta, sentia agora que algo se passava. Algo de
muito estranho se passava. Esta era uma situação deveras anormal.
– Se quiser chamar a polícia, chame. Até acho que deve.
Mas antes quero contar-lhe o que me trouxe aqui, a sua casa – disse-lhe,
tentando acalmá-lo com o meu olhar, agora já menos turvo. – Quero mesmo!
Preciso! Quero... – continuei, agora mais lentamente e com as lágrimas
novamente a quererem precipitar-se, face abaixo...
Oito meses antes, oito
tristes meses antes
O trabalho andava a matar-me lentamente... quase não tinha
tempo para a família. Mas assim tinha que ser, assim tinha que ser para nada
faltar à nossa mesa, para nada faltar à minha esposa e aos meus dois filhinhos.
Era um trabalho duro, difícil, o trabalho nas obras exige muita força física e
deixa-nos completamente derreados ao final do dia. Caí nesta situação devido à
crise financeira que atravessa o país. Quando chegava a casa, a única coisa que
me apetecia era brincar um pouco com os meninos e deitar-me. O dia seguinte
amanhecia sempre cedo, para mim. Ou melhor, a noite não acabava tarde, antes
dela acabar já eu estava na rua, preparado para um novo dia. Ou melhor, muitas
vezes não estava preparado. Não estava mesmo. O descanso era muito pouco. Mas
assim tinha que ser.
Tinha casado havia nove anos e sempre assim tinha sido.
Trabalho árduo, sempre trabalho. Minha mulher tinha ficado desempregada pouco
antes do nosso casamento. Antes dos nossos filhos nascerem, ela ainda tomava
conta de algumas crianças, assim contribuindo com algum dinheiro para o
orçamento mensal. Mas agora nem isso. Dizia que os filhos a ocupavam a tempo
inteiro e que queria ser mãe a tempo inteiro. Concordei com isso e tentei fazer
mais turnos no trabalho, sempre que possível e sempre que havia trabalho que
justificasse a necessidade.
Os dias corriam assim, entre lamentos de que as coisas
não estavam bem em termos de contas, entre lamentos de que as coisas assim não
podiam continuar. Quando chegava a casa, não tinha a paz de que necessitava
para me sentir calmo, para brincar com as crianças. Eram lamúrias atrás de
lamúrias, mas eu pouco podia fazer. Estafava-me a trabalhar, não tinha um
minuto de descanso e, ainda por cima, em casa não tinha a paz suficiente para
retemperar forças...
Há muito, há muito mesmo, que não havia um gesto de
carinho entre nós, minha mulher e eu. Há muito que não havia um beijo, um
abraço apertado, um carinho dissimulado.
A vida continuava, a vida continuava assim... porque
tinha que continuar.
Também notava um quase total desinteresse da parte
dela... hoje vivíamos apenas para os nossos dois filhinhos. Mas, devia talvez
ser impressão minha, começava a notar um desinteresse, um cuidar por cuidar,
nada daquele amor extremo que existia... e que sempre deveria existir.
Mas temos sempre que dar graças a Deus por existirmos,
pensar que hoje, o dia de hoje, é sempre uma dádiva. Será por isso que se chama
presente? Nunca tinha pensado nisso...
Às vezes, vemos a nossa vida como um conto que estamos a
ler... cheio de enredos intrincados, cheio de intrigas, momentos inesperados e
momentos felizes, outros nem por isso. Quantas vezes já pensámos e já
formulámos o pensamento de que a nossa vida dava um filme? Quantas? Será o
nosso destino uma teia de cordelinhos manipulada? Uma teia de momentos? Uma
teia de agoras que acabam por construir o nosso depois?
Um dia, igual a tantos outros, mas com um leve senão...
senti-me indisposto no trabalho, resolvi pedir para sair mais cedo, ir
descansar a cabeça, para casa. Para o meu, para o nosso lar. Sim, uma casa só
deve ser chamada lar quando nos sentimos em família lá!
Ao chegar, tentei não fazer muito barulho, queria fazer,
ao mesmo tempo, uma surpresa à minha esposa. Àquela hora, sabia que os meninos
estavam no jardim infantil, penso que ela aproveitava esse tempo para
descansar.
A casa estava silenciosa... ou antes, assim parecia. A
sala, no andar térreo, estava deserta, televisão apagada. O que indiciava, tal
como eu calculava, que os meninos não estavam. A balbúrdia habitual que eles
faziam, no seu linguajar de crianças, não se ouvia... o silêncio imperava no
andar baixo da casa.
Dirigi-me às escadas que comunicavam com o andar de cima,
onde estavam os quartos, o nosso e o dos nossos filhinhos. Calculava que minha
esposa estivesse dormindo. Mas comecei por ouvir leves ruídos vindos de cima...
e, qual não é o meu espanto, quando vejo peças de roupa espalhadas pelos
degraus da escada. Uma saia aqui, um soutien ali... que estaria a acontecer?
Porquê esta desarrumação?
Os leves ruídos que ouvira surgiam agora mais nítidos.
Eram agora gemidos, gemidos cadenciados, intervalados por um ou outro grito
mais audível, mais esclarecedor do que estava acontecendo. Não queria
acreditar... fazia por não querer acreditar... Mas o que se estava a desenrolar
na minha casa era, agora, quase transparente para mim. A angústia apoderava-se
de mim, as pernas fraquejavam ainda a meio das escadas que me levariam à
decepção... à decepção total. A festa da minha vida estava, agora, quase a
terminar. Os meus dias felizes estavam, agora, prestes a terminarem. A vida, a
minha vida, tal como a conhecia, estava prestes a mudar. O sol que antes estava
radioso parecia agora ter sido coberto por uma densa névoa, uma névoa que
enegrecia o ambiente, uma névoa que toldava o meu olhar, que me fazia quase
tombar com a sensação de desfalecimento, que se apoderava de mim.
A festa, a festa da minha vida ia terminar, ia terminar
sem se esgotarem os foguetes... ouvia agora sussurros vindos do quarto, do
nosso quarto. Sussurros que não eram os meus... sussurros que eram, também, os
de minha mulher. As palavras bonitas que tinha preparado para a surpresa, para
a surpresa de chegar a casa sem anunciar, estavam agora enroladas, enroladas
num nó na garganta que iria demorar muito tempo a ser desatado. Será que o
conseguiria desatar?
Subi, a muito custo, os restantes degraus da escada, da
escada que me levaria ao cadafalso... agora ouvindo com mais nitidez as vozes,
as duas vozes que, alegres, disputavam o prazer da nossa cama... da cama onde
trocáramos juras de amor, da cama que ambos partilhávamos há anos, da cama que
era nossa, minha e dela!
Ao entreabrir a porta do quarto, deparei com aquilo que
já esperava e não queria esperar... deparei com a total decepção da minha vida,
com a minha vida a escorregar por aqueles degraus da escada que antes tinha
subido. A minha mulher, a minha mulher querida, a mãe dos meus filhos, na nossa
cama com o nosso vizinho... a minha vida virou no momento em que me virei para
voltar a sair de casa, para voltar costas a uma vida feliz que vivera... isso,
que vivera. Não havia maneira de voltar a caminhar pelos lugares antes
percorridos, eram lugares percorridos a dois, não fazia sentido.
Actualidade... em
casa do senhor, como ladrão
– E foi isto, senhor, foi isto que me trouxe a sua casa.
A minha mulher, a minha ex-mulher, saiu de casa depois do sucedido. Fiquei só,
entregue aos meus meninos... aos meus queridos filhos. E... se a minha vida, se
a nossa vida, já era complicada, mais complicada se tornou depois disto que
acabei de lhe contar – falei tudo de uma vez só, contei, assim, com palavras
umas vezes quentes, outras mais desprendidas, o que se passou. O senhor
olhava-me estarrecido... abandonado aquele olhar ameaçador e autoritário que
antes revelava, agora olhava-me com olhos calmos, suaves, como se
compreendesse, como se o cenário que lhe transmiti também o tivesse afectado a
ele. – Quando ouvi os meus meninos pedirem que falasse com o Pai Natal, para
ele não se esquecer deles... uma tristeza infinita invadiu-me. A vida, que já
não me era risonha, mais sombria se tornou depois do sucedido. O meu dinheiro,
fruto do meu trabalho árduo, não chega para devaneios, mal chega para colocar refeições
na nossa mesa. – Agora, agora já as lágrimas me caíam... E, com a voz trémula,
ainda disse: – O problema é que o Natal, para os meninos, não é um devaneio, e
não vi outra alternativa. Pensei em tudo, e acabei por cair na tentação...
poderá pensar que decidi pelo mais fácil, pelo mais tentador. Não! Não me
interessa a sua riqueza, não me interessam as riquezas que possa ter. Não as
invejo nem vim para as roubar! Mas isso agora pouco ou nada interessa, pouco ou
nada tem valor. O que interessa, na realidade, é que estou aqui e estou aqui
como ladrão! Apenas queria dizer-lhe que o meu intuito ao vir aqui, a sua casa,
foi, de facto, roubar. Mas roubar brinquedos, roubar brinquedos dos seus
filhos. Vi que têm idades semelhantes às idades dos meus. Pronto... é isto...
chame a polícia, por favor, senhor – dito isto, fraquejei completamente, os
joelhos não aguentaram o peso, não aguentaram o peso da alma dorida e dobraram,
fazendo com que caísse desamparado, ajoelhado no chão da sala do senhor.
Ele, vendo tudo isto, correu para me ajudar. Agora, já
afastado definitivamente o medo inicial, gerado por encontrar um ladrão em sua
casa, a sua primeira preocupação era comigo. Ver se eu estava bem, ver o que
poderia fazer. Aqui vive uma alma bondosa...
O senhor ajudou-me, sentando-me no sofá, indo buscar um
copo de água com açúcar, cuidando da minha parte física. A parte mais enferma
era a outra, a parte emocional, a minha alma que estava doente... e será que
havia medicação para ela? O senhor estava, na sua bondade, a ajudar um ladrão
que tinha entrado em sua casa, com o propósito de roubar. Será que conseguiria
ajudar o homem que estava por detrás do ladrão?
– Sabe – começou por dizer o senhor, quando eu me acalmei
um pouco – coloque-se na minha posição. O que faria ao encontrar um estranho em
sua casa? Ao encontrar alguém que vem roubá-lo, na sua casa?
Ao ouvir isto... ao ouvir isto, dito por outra pessoa,
pelo dono da casa que eu ia roubar, as lágrimas voltaram a cair. Caí em mim, ao
ouvir estas palavras da boca do senhor, a tremenda monstruosidade do que fiz...
não tinha qualquer desculpa.
– A sua história é triste, muito triste, mas igual a
tantas outras que ouvimos e vemos por aí – ele continuou a falar, eu pouco o
ouvia, mas ia retendo algumas das palavras que ele dizia. – Há pessoas perto de
nós, longe de nós, fora da nossa vista, perto das nossas casas, que mendigam as
migalhas que nós deitamos fora, que mendigam o que nós detestamos olhar. E nós
nem olhamos essas pessoas nos olhos. A miséria é uma chama que queima!
Acredite... evitamos olhá-la como evitamos entrar em becos escuros. Com medo
que nos contagie? Talvez... mas há um medo intrínseco que seja contagioso... ou
até que alguém nos veja olhar para a miséria. Do alto dos nossos haveres,
olhamos para baixo, muitas vezes com desdém, para quem anda mais perto do chão,
para quem não consegue tirar os olhos do chão, para quem o chão está tão perto
que quase bate na cara.
O senhor falava, olhando para mim e ao mesmo tempo com os
olhos no nada... sabem quando vemos alguém olhar assim? Ou quando nós próprios
olhamos assim? O senhor estava a olhar assim...
Eu apenas abanava a cabeça por vezes, em concordância. As
lágrimas continuavam a molhar-me o rosto, qual chuva miudinha que estivesse a
cair... e continuava a ouvir, continuava a ouvir o senhor.
– Os mendigos têm vergonha de pedir... é natural,
demonstrar necessidades é vergonhoso, na nossa sociedade. Isto não está
escrito, não é lei, mas é vergonhoso. Tal como é vergonhoso termos vergonha de
dar, sem a isso sermos impelidos – a voz do senhor saía, agora, firme, convicta
das suas certezas. – Voltando ao que o trouxe aqui, à sua necessidade de
roubar, na minha casa – ao ouvir dizer isto, baixei de novo a cabeça, baixei de
novo os meus pensamentos, coloquei-os mais perto do chão, onde, na minha
opinião, eles deveriam estar... pensamentos sujos, pensamentos sombrios – ela,
essa necessidade, foi gerada por uma situação de vida, uma situação, como já
referi, igual a tantas outras. Isso não o desculpa, o que o fez cair na
tentação de vir roubar em minha casa não o desculpa dessa mesma tentação. O que
me comoveu na sua história não foi a história em si, como lhe disse, foram os
sentimentos que demonstrou a contá-la, os sentimentos que nutre por seus
filhos, os sentimentos que, percebe-se, nutre ainda pela mãe deles. É correcto,
é a mãe dos seus filhos, mas terá que pensar no futuro, num futuro sem ela.
O senhor continuava, assim, a mostrar-me porque não tinha
chamado, ainda, a polícia. Será que ainda iria chamá-la?
– Os seus filhos não podem, sob nenhum pretexto, ser
prejudicados por erros dos pais, ser penalizados, na sua inocência e meninice,
por erros dos pais. Não podem pagar por atitudes levianas de seus pais. – O
senhor olhava-me, agora, bem fundo nos olhos, bem fundo na minha alma, lia os
meus pensamentos, sem precisar perguntá-los ou que eu os referisse. – Vamos
combinar uma coisa. Vou deixá-lo ir para casa! Vou deixá-lo ir em paz, para sua
casa, para junto de seus filhos. Mas vamos fazer um acordo. Não posso permitir que
volte a fazer isto. Seja aqui, em minha casa, seja noutra casa qualquer. As
outras pessoas também não devem, não podem, pagar pelo mal que aconteceu. Que
aconteceu entre vocês, na vossa casa. Vai trazer os seus filhos cá a casa, na
noite de Natal, quero que conheçam os meus. Quero que brinquem juntos, que
partilhem juntos a alegria de ser Natal. Quero que juntos partilhem brinquedos,
partilhem a alegria de ser crianças, que é o que eles devem ser nesta altura,
crianças. E não ganharem o ar sombrio de meninos reflectindo os erros dos pais.
Passarão o Natal connosco! Está decidido!
As lágrimas corriam-me, agora, a fio. Em vez da polícia,
tinha sido chamada a generosidade, na pessoa daquele senhor, tinha sido chamado
o espírito de Natal, na pessoa daquele senhor.
Os meus filhinhos iriam ter um Natal normal, iriam sorrir,
iria ver as bochechas deles vermelhinhas de contentamento, iriam ter meninos,
como eles, para brincar, iriam saber e perceber o significado da partilha.
São acções destas, acções como a deste senhor, que nos
fazem acreditar no Homem, na Humanidade enquanto Humanidade e não um conjunto
de homens. Que nos fazem acreditar que a Humanidade não foi, tão só, um
acidente, um acidente da Natureza!
---
in «Boas Festas», páginas 162-171
Silkskin Editora, Dezembro 2015
NOTA BIOGRÁFICA DO AUTOR
Sérgio Sola é formador profissional na área de informática, com um
pequeno devaneio: escrever. Dedica os seus passos às calçadas de Lisboa, Évora,
Olhão, Setúbal e Luanda. Nasceu em Olhão, há 52 anos. Escrevendo sobre outras
coisas que não informática, expressa as suas ideias sobre temas tão
(in)consequentes como a ficção científica, o amor, a incondicionalidade das
coisas e outras coisas. Venceu o 5º Concurso Literário («Quando o Amor é Cego»)
da Papel D’Arroz Editora. Participações: «Amar (s)em Desespero» e «O Poder do Vício»
(ambas da Papel D’Arroz) e «A Bíblia dos Pecadores», uma antologia independente organizada por Isidro Sousa. Publicou «A Humanidade não é um Acidente!» na antologia «Boas Festas», organizada por Isidro Sousa para a Silkskin Editora.
Blogue do Autor: http://letrassonhadas.blogspot.pt
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