O final de
Setembro aproximava-se. Em breve, entregaria a chave do quarto que ocupara
durante os últimos tempos, e ainda não encontrara um novo poiso. Não dispunha
de dinheiro suficiente para alugar um apartamento e partilhá-lo estava fora de
questão. Conhecia imensas pessoas, todavia, não achava ninguém de confiança com
quem dividir uma casa. Por isso, procurava outro quarto. Os que já visitara não
me satisfizeram. Ou não apresentavam condições mínimas de habitabilidade, ou as
rendas eram altíssimas, ou os senhorios viviam nas mesmas casas (eu queria um
espaço independente) e as limitações que impunham não lembravam ao diabo: não
cozinhar, não fumar, não receber amigos, tomar um só banho por dia, entrar até
certa hora, e mais um rosário de penas. Enfim, vendo a minha busca infrutífera,
optei por instalar-me numa pensão do Bairro Alto, na qual permaneceria até arrecadar
o dinheiro necessário para arrendar um estúdio ou mesmo umas águas-furtadas.
Logo nos
primeiros dias após a mudança conheci o Carlos, um rapaz deveras atraente de
vinte e sete anos de idade, com um ar robusto, olhar pungente e pronúncia
algarvia, que passava o fim-de-semana em Lisboa. Cruzámo-nos na recepção e aquela
troca de olhares furtivos transmitiu-me a certeza: ele era dos nossos! O modo
como me fitou denunciou o seu interesse em mim. Não obstante, sabendo-o com
amigos (não sabia ao certo quantos porque já haviam subido aos quartos), talvez
com um namorado atrelado, deixei passar a ocasião – era impossível que um belo
exemplar de macho daqueles não tivesse companhia. Jogos de sedução sempre me
fascinaram; viciaram-me no acto de seduzir e de ser seduzido, consoante as
circunstâncias. E quanto mais agrestes, perigosas ou inusitadas, melhor! Naquele
exacto momento, essa vontade quase incontrolável tentava-me de uma forma algo
insana, porém, consegui dominar-me: não ousei corresponder ao possível engate
para não armar confusão.
Reencontrámo-nos
horas mais tarde, na discoteca em que eu fazia a foto-reportagem de uma festa
de espuma. Era um evento grandioso, bem fresco, que encerrava a temporada do
Verão. Fotografava todos os corpos masculinos, esbeltos e esculturais, que me
eram possíveis retratar. Dava preferência aos mais exóticos e sensuais, aos de
tronco desnudo ou apenas de calção, que se moviam desinibidos, refrescando-se
na espuma. Ora os fotografava em grupo, ora lhes pedia que fizessem poses
ousadas roçando o erotismo. Eles adoravam! Sozinhos, aos pares, a três, aos
magotes...
No instante em
que disparei o flash sobre um simpático casalinho afogueado, o Carlos
abordou-me. Desejava falar-me. Os seus amigos continuavam a saracotear-se
naquele mar de espuma, enquanto íamos ao balcão do piso superior. Ofereceu-me
uma bebida. Esclareceu logo que não me conhecia, mas conhecia o meu trabalho.
Elogiou-o. Fotografar era a minha verdadeira paixão, um autêntico vício laboral,
e a fama de bom fotógrafo corria na noite, em todos os meios, especialmente a
de fotografar homens nus. O Carlos mencionou o Tozé e o Paulo, seus amigos, o
casal que fotografei, algumas semanas atrás, na Bela Vista, a Praia 19 da Costa
da Caparica, e revelou:
– O Tozé
mostrou-me as fotos. Estão impressionantes!
– Não ficaram
mal – admiti. – Mas poderiam estar melhor.
Logo depois, ele
indagou num tom que nada devia à subtileza:
– Que tal
passares o próximo fim-de-semana no Algarve?
Fitei-o, sem dissimular
um ar de recusa.
– Vivo sozinho –
insistiu, acendendo-me o cigarro. – Podes ficar no meu apartamento.
Lembrei a troca
de olhares na pensão e analisei esse convite inesperado. Não restavam dúvidas
de que estava cheio de intenções libidinosas.
– Não posso ir –
respondi, directo. – Mas agradeço-te.
– Que pena,
Valero! Nesta altura, a noite algarvia está no melhorio, superagradável. A
época balnear vai-se, mas o tempo ainda está bom para se fazer praia. E não há
tanta confusão como em Julho e Agosto. Turistas, já nem vê-los. Poderias ter um
fim-de-semana espectacular.
– Não estou numa
de aventuras, meu caro – volvi-lhe, olhos nos olhos. – Muito menos enfiar-me no
meio de casais. Se tu e o teu namorado querem variar com um terceiro gajo, ou
quem sabe armarem uma orgia, procurem outro. Eu não estou disponível.
O Carlos
desvendou então o seu objectivo: pretendia que lhe fizesse uma sessão de
fotografias. Queria-as, dele com o namorado, bastante picantes, eróticas, escaldantes.
Eles conheciam bons fotógrafos, amadores e profissionais, porém, todos
estranhos ao universo gay. Jamais os contratariam. Eu era o único profissional
da fotografia homoerótica de que sabiam. Comigo, sentir-se-iam à vontade.
– As fotos do
Paulo e do Tozé estão mesmo soberbas – prosseguiu, na esperança de me
convencer. – Sei que farias um trabalho idêntico. Ou melhor, se é que isso é
possível...
– Cobro muito
caro, meu rapaz! – interrompi-o, tentando desarmá-lo. – E uma sessão no Algarve
custaria bem mais. Há deslocações, alojamento, alimentação...
– Sei quanto o
Tozé e o Paulo pagaram. Ofereço o mesmo, mais as despesas da viagem. Além
disso, ficas na minha casa. Topas?
O cachet era-me
tentador e bastante oportuno. O que eu não tinha, era a mínima pachorra de
passar o próximo fim-de-semana fora. A aproximação do julgamento da madame
Natália Madjer, a bandida que assassinou sem dó nem piedade o meu amado pai, e
a incerteza do seu desfecho atordoavam-me o espírito. Por outro lado, não
estava bem de massas. Tendo em conta as actuais limitações financeiras, não poderia
dar-me ao luxo de rejeitar tão generosa oferta. Até porque a magia de fotografar,
como referi algures, era o meu vício predilecto, uma paixão desregrada da qual jamais
abdicaria por nada deste mundo. Mesmo que implicasse o sacrifício de viajar
numa época menos favorável...
– Deslocar-me ao
Algarve? Só pelo dobro. Além das despesas, claro – arrisquei, na expectativa de
amealhar mais alguns cobres. – Metade do pagamento antes, a outra parte na
entrega do trabalho. É pegar ou largar!
– Combinado,
Valero. Dinheiro não vai ser problema.
Ao ver-me ainda
relutante, e talvez para me tranquilizar, revelou ser filho de um empresário da
indústria hoteleira e que dirigia um dos hotéis da família. «Logo vi!», pensei com os meus
neurónios. «Tanta gente a dar o
cabresto neste País para ganhar um ordenado mínimo que é uma miséria, e este Chico
Esperto oferece-me quase o dobro só para satisfazer um capricho.» Contudo,
intrigou-me o facto de ele, tendo possibilidades de ficar num hotel cinco
estrelas, se hospedar numa modesta residencial do Bairro Alto. Explicou-se: não
queria separar-se dos amigos, com quem viera do Algarve, que não usufruíam dos
mesmos recursos que ele.
– Podes ir para
baixo na sexta-feira – avançou, visivelmente excitado – e regressas quando
quiseres.
– Vou no sábado
de manhã – decidi, peremptório. – De tarde, faremos a sessão. À noite, retorno
a Lisboa. Não posso ficar muito tempo fora.
– Tão rápido?! –
pigarreou, surpreendido. – Podias passar um fim-de-semana memorável connosco...
– Tenho imensos
compromissos – esquivei-me, finalizando o assunto. – Vou e volto.
– Como queiras –
anuiu. E deixando-me à vontade: – Se decidires ir antes, apita-me, OK?
Após termos
acertado o contrato e discutirmos os pormenores da viagem, retomei a minha
reportagem. Quanto ao Carlos, desapareceu na espuma, em busca dos amigos.
***
A semana voou. A
sexta-feira trouxe-me uma sensação de desconforto. Era um daqueles dias em que
nada me apetecia fazer. Sentia-me irritadiço, tudo me enervava. Durante a
manhã, tivera uma reunião com o advogado sobre o julgamento da
assassina, cada vez mais iminente. A minha ansiedade era crescente, já não me
concentrava em nada, apetecia-me sumir de Lisboa. Lembrei-me das palavras do
Carlos («Podes ir para baixo na sexta-feira... Se decidires ir antes,
apita-me...»); tentaram-me a abalar já para o Algarve mas, quando lhe ia
telefonar, vacilei. Fui beber um café ao Chiado. Retornei à pensão ainda indeciso
entre viajar de imediato, ou não. Num impulso, resolvi o impasse: preparei a
mochila, dirigi-me para a estação de metro e rumei à Gare do Oriente.
Enquanto
esperava pelo autocarro, andei à toa pelo Centro Comercial Vasco da Gama, a
observar montras. Como não podia deixar de ser, mirava não só as montras mas
também as belas figuras masculinas, que por sinal abundavam ali, naquela hora.
Uma delas destacou-se: um rapaz de olhos verdes e cabelos negros bem curtinhos,
à boa maneira militar, mais ou menos da minha idade. Todavia, nenhum indício de
que fosse homossexual. Como a hora da partida se aproximava, não me dediquei à pesquisa,
camuflando na alma o desejo viciante de seduzir. De regresso à estação,
aproveitei para comunicar a minha decisão ao Carlos. O seu telemóvel estava
desligado. Deixei-lhe esta mensagem no voice-mail:
«Viva Carlos, fala o Valero. Decidi ir hoje. Chego por volta da meia-noite.
Mais tarde, ligo-te.»
Entrei no
autocarro já lotado. Procurei o meu lugar. Não foi difícil, porque era o único
disponível. Guardei a mochila no compartimento junto ao tecto e sentei-me
rápido, pois o autocarro já se movia. Ao virar-me para a janela, o que vi
sobressaltou-me: sentado no banco ao lado, encontrava-se ninguém mais ninguém
menos do que o rapaz das minhas dúvidas. Não quis expor-me tão frontalmente. Já
que a viagem me permitia o tempo, preferi estudá-lo com olhares curtos mas
eficazes, de modo a descobrir se seria gay, se valeria a pena investir nele e –
o que não era menos importante – se ele estaria disposto a responder à
investida.
Os meus olhares
ainda acabariam por denunciar-me. Era preciso forçar-me para que fossem breves.
Mas o bichinho do engate apoderava-se do meu ser e os olhos lutavam por não se
afastarem do que viam. Uma bela tatuagem no braço esquerdo, divinamente bronzeado, era destacada pelo branco da
camisa colada ao corpo. Aos braços musculosos faziam companhia as coxas
igualmente musculosas, a quererem rebentar as calças de ganga também apertadas.
Activando a minha visão de raio X, imaginei quão bom seria o que repousava sob
aquelas calças e entre aquelas coxas.
Há muito que já
passáramos a Ponte Vasco da Gama e eu ainda não conseguia descortinar se o gajo
alinhava com gajos. Mudei de táctica. Abandonei a rajada de olhares furtivos e
meti conversa. Creio que foi a excitação do que via que me fez iniciá-la com
esta parvoíce:
– Desculpa
incomodar... sabes se o autocarro pára em algum lugar?
– Pára uns
quinze ou vinte minutos numa estação de serviço do Alentejo – informou ele, com um sorriso mais enigmático do que
o da Mona Lisa e que não ajudava em nada.
– Ainda bem!
Sempre posso ir comer alguma coisa – suspirei, doido por arranjar outro assunto
para desenvolver a conversa, mesmo que fosse uma conversa da treta. Não me
ocorrendo nenhum tema interessante, fui fazendo aquele render: – Com a pressa
de apanhar o autocarro, não jantei. O estômago já está a dar horas...
Ele olhou para
mim e nada falou. Eu já sentia indícios da minha derrota. De repente, alterando
a expressão do rosto para outra mais receptiva, ele murmurou:
– Tenho
chocolates e biscoitos. – E pegando logo na sua mochila, ofereceu: – Posso
arranjar-te alguns.
– Deixa estar –
respondi, aliviado. – Dá para aguentar. Obrigado.
– Pelo visto,
nunca foste ao Algarve.
– Sim, já fui.
Mas sempre de carro – desculpei-me. Agarrei, seguro, as rédeas do diálogo,
determinado a levar o meu nobre objectivo a Garcia: – Vives no Algarve?
– No Porto. Vou passar
o fim-de-semana com uns amigos.
– Eu... vou para
fazer uma reportagem amanhã. Decidi ir mais cedo.
Ele arqueou as
sobrancelhas.
– És jornalista?
– Fotógrafo.
A minha
profissão pareceu interessá-lo. Pergunta vem resposta vai, a conversa foi
fluindo. Chamava-se Sandro, um nome que me agradou tanto quanto o seu dono. Confessei
o amor incondicional, quase obsessivo, pela fotografia, um vício saboroso que
dominava toda a minha vida. Quando citei a prestigiada Panorama, uma das
revistas com as quais colaborava, ele revelou que era finalista de jornalismo e
gostaria de estagiar ou, quiçá, vir mesmo a trabalhar na Panorama. Veio
então uma avalanche de questões relacionadas com a minha actividade específica
e o meio jornalístico.
O clima que eu ambicionava
foi despontando enquanto palestrávamos. Ainda se mostrava indefinido, todavia, era
já um tanto envolvente, algo revelador. Volta e meia volta, os nossos olhos faiscantes
entrefitavam-se e os lábios trocavam sorrisos manhosos. O desejo ampliava as
minhas ganas de agarrar todo aquele corpo repleto de sensualidade. Algo me
dizia que ele também gostava da fruta. E que o fogo era recíproco.
Quando o
autocarro parou na tal área de serviço, o Sandro encaminhou-se apressado para
os lavabos. Segui-o. Mal adentrei na casa de banho, aleguei ter calor e fui
lavar o rosto. Enquanto o enxugava, espiolhava, através do espelho, o alvo da
minha cobiça, real objecto de desejo, que se encontrava num mictório. Após
urinar, ele virou-se rapidamente, olhando directo para o espelho, como se
pressentisse estar a ser vigiado.
– Ufa! Sentia a
bexiga mesmo aflita – balbuciou, sorrindo com uma certa malícia. Deu dois
passos na minha direcção, abotoando a braguilha. – Bebo litros de água por
dia...
Se ainda me
restava algum resquício de dúvida, nesse instante dissipou-se por completo. A vontade
tremenda de abraçar aquele corpo estonteante revolvia-me as entranhas. Dirigi-me
para um dos compartimentos isolados e ele acercou-se dos lavatórios. Num
impulso, entrei, com a tenda armada dentro das calças, e olhei para trás. O
ardor consumia-me. Ele mirava-me pelo espelho. Pisquei-lhe o olho. Não se fez
de rogado: saltou logo para dentro da cabina. Tranquei a porta. Abraçámo-nos
com força. Beijei-lhe a boca carnuda, enquanto enchia a mão, freneticamente,
com aquele volume afrodisíaco quase a rebentar-lhe a ganga. O Sandro, por sua
vez, deslizava as mãos flamejantes pelas minhas costas febris. Num ápice,
invadiu-me o traseiro, mergulhando a mão direita pelas calças adentro.
Acariciava-me as nádegas e o rego. Foi até ao anel. Senti um dedo ágil a
perscrutar o orifício apertadinho que piscava de ansiedade. Com a outra mão,
levou o dedo indicador à minha boca. Chupei-o com gana. Mas o tempo não era
muito. Logo logo lhe escancarei a carcela. O Sandro libertava para fora das
calças um falo imenso, agora uma pedra de tão rijo, ao mesmo tempo que ouvíamos
passos apressados a entrarem e a saírem dos lavabos. Baixei-me num relance e,
faminto como um leão, suguei-o até à garganta. Logo após, implorei-lhe ao
ouvido, bem baixinho:
– Enfia-me já
essa coisa! Fode-me!
Tirou um
preservativo do bolso e pô-lo rápido. Arriei as calças até aos joelhos, virei-me
de costas e apoiei as mãos na parede, arqueando os glúteos. Um misto de terror e
deleite invadia a atmosfera. Afinal, alguém poderia surpreender-nos ali... com
a boca na botija. Não vacilámos um segundo. Ele meteu-me lentamente aquele tronco
poderoso. Só de lhe sentir a glande na próstata, e sem sequer tocar no meu
membro, quase explodi. Assim que o introduziu por completo, exigi que
acelerasse os movimentos. Possuiu-me com uma garra felina, selvática. Eu
contorcia-me de prazer. A excitação era tão intensa que fez-nos ejacular pouco
depois, em simultâneo.
Ofegantes,
limpámo-nos com aquele papel higiénico áspero e rasca das retretes públicas,
ajeitámos as roupas amarfanhadas e retirámo-nos, sorrateiros, daqueles lavabos
infestados de luxúria. Disparámos na direcção do autocarro, já prestes a
partir.
Recomeçada a
viagem, rocei o braço do Sandro com o meu cotovelo. Ele entrelaçou os dedos nos
meus. Lá fora escurecia; as únicas luzes eram as dos automóveis em sentido
contrário. O interior do autocarro achava-se em penumbra; somente minúsculas
luzinhas de presença, aqui, ali e acolá, proporcionavam uma ténue claridade.
Dei uma vista-de-olhos ao redor, procurando certificar-me de que não éramos
observados. Os passageiros do banco ao lado dormiam, os de trás entretinham-se
com jornais, livros ou revistas e, à frente, cavaqueavam. Levei então os meus
lábios aos do Sandro. Ele retraiu-se e apertou-me forte os dedos. Compreendi
que sentia medo.
À medida que os
pneus do autocarro rasgavam os quilómetros de asfalto que restavam, falávamos
animados sobre a noite gay algarvia, que me era praticamente desconhecida. O
Sandro citou bares e discotecas em voga, em várias cidades. E, mudando a voz
para um tom sério, alertou-me sobre uma situação assaz perigosa: contou que,
desde há algum tempo, um maníaco ou coisa do género, conhecido por Tito, vinha
percorrendo toda a costa algarvia atrás de homossexuais. Fazia-o tanto nas
praias de nudismo como nos bares. Engatava-os, ou deixava-se aparentemente
engatar, e partiam para lugares remotos. Sexualmente, tudo fazia e tudo permitia
que lhe fizessem. Constava que era viciado em sexo, mas... Finalizadas as aventuras
libidinosas, agredia e roubava os homens ou rapazes que acabara de seduzir,
sendo extremamente violento. Muitos já haviam padecido um perigo real nas mãos
desse Tito.
– Todos o temem –
frisou o Sandro.
– E ninguém faz
nada para o deter?
– Não há quem
ouse enfrentá-lo. Esse cabrão já foi preso inúmeras vezes. A polícia de todo o
Algarve conhece-o de ginjeira, mas não faz nada. Mal ele entra em cana, sai
logo cá para fora e torna a atacar. Nada o intimida, nem ninguém. Já tentaram
cortar-lhe a entrada em bares e ele reagiu mal, e com ainda mais violência.
Valero, se porventura ele cruzar o teu caminho, toma mesmo cuidado! Já sabes do
risco que corres.
– Como é que é
esse tarado?
– Corpo
musculoso...
– Como o teu?
– Bem mais.
Sorrimos os
dois. Ele avançou:
– É mesmo
atlético, bastante atraente e, ao que consta, tremendamente sedutor. Tem cerca
de trinta e cinco anos, veste blusões de cabedal, anda carregado de ouro e
sempre armado de navalha...
Íamos tão
entusiasmados na conversa que nem percebemos quando o autocarro chegou ao
destino. Fim de viagem.
O Sandro, agora ainda
mais sério, pediu que eu saísse primeiro. Afirmou que os seus amigos o
esperavam, e não queria ser visto na companhia de um “belo desconhecido”. Entendi
o seu receio, embora o considerasse infundado. Entreguei-lhe um papel onde
rabiscara o meu contacto telefónico e convidei-o a passar uns dias em Lisboa.
Propus reencontrarmo-nos lá mesmo no Algarve, se surgisse a oportunidade.
– Lisboa, talvez
– retorquiu ele, guardando o papel num bolso interno da mochila e erguendo-se
do banco. – Cá, no Algarve, vai ser impossível. – E exibindo, subitamente, um sorriso
lascivo, todavia, indecifrável: – Ou talvez não... quem sabe?
Já se retiravam
os últimos passageiros quando, finalmente, dissemos adeus um ao outro.
Despedi-me roçando uma mão discretamente sobre aquele seu volume acumulado sob o
tecido de ganga, que esboçou um ligeiro inchaço. A mão firme, porém carinhosa,
do Sandro, ao afastar a minha, patenteou que o nosso encontro estava mesmo
encerrado.
***
Mal pus os pés
fora do autocarro, dei de caras com o Carlos. Ele saudou-me com um abraço
efusivo. Estranhei que estivesse à minha espera. Ora, eu deixara-lhe uma
mensagem no voice-mail, no entanto, não havia mencionado em que transporte
viria, nem o horário exacto da chegada.
– Que tal a
viagem, Valero?
– Nem te conto,
Carlos!
– Pelo visto,
foi boa...
– Muito boa! Podes
crer.
Nisto, o Sandro
desceu do autocarro.
O Carlos
fitou-o, com um olhar que me pareceu especial.
– Como este
mundo é pequeno! – exclamou, abraçando o Sandro; essa atitude deixou-me boquiaberto,
verdadeiramente surpreso. Ele prosseguiu, virando-se para mim: – Valero, este rapazinho
é o Sandro, meu namorado. Vocês vieram no mesmo autocarro!
O meu sangue
gelou. «O que é que vai acontecer
agora, meu Deus?», pensei com os meus botões, um tanto alarmado. Não
obstante, esforcei-me e recuperei a compostura. Encarando o Sandro, pisquei-lhe
o olho. Apaziguou-me o seu ar natural e de cumplicidade.
---
Enviei este texto para o 6º Concurso Literário da Papel D'Arroz Editora, subordinado ao tema «O Poder do Vício». Todos os textos concorrentes estão online, na página da editora. Neste endereço: http://editorapapel.blogspot.pt/
Como sempre, uma escrita potente, de proporções atómicas! A perfeição ao mais alto nível, acompanhada de uma coragem invejável. Parabéns por ousares! Mui caliente! Impróprio para santinhos de pau oco ;)
ResponderEliminarParabéns e muita sorte! Abraço
Muita amabilidade tua, Suzete! Ainda bem que soubeste apreciar... Também gostei do teu texto. Tive muito gosto em revisá-lo e considero-o um forte candidato para vencer o concurso. Torço por ti... Boa sorte!
EliminarSoberbo. Infelizmente, fico sempre a pensar que o Isidro já não me surpreende com a sua escrita - melhor é impossível. Eis senão que o Isidro escreve um outro conto, e eu sorrio, feliz - fantástico!
ResponderEliminarVolto ao meu estado expectante: será este o melhor do Isidro? Socorre-me a certeza que o Isidro me vai dando: o próximo vai ser ainda melhor!
O Isidro é, ponto final, um elevadíssimo ESCRITOR. Tenho que dizer desta maneira, para conseguir furar a muralha de humildade que bafeja o seu espelho. E volto ao conto..."espelho meu, espelho meu, diz-me que um dia escreverei como este amigo meu!"
Meto, à sorte, a mão no saco de adjectivos (são tantos), e tiro um ao calhas: Magnífico!
Obrigado, Isidro!
Gostei d' A Viagem de Valero, muito aventurosa e preenchida de vícios. Deixe-me adivinhar: Carlos... é Tito? :) Sem dúvida ousado! E ainda bem!
ResponderEliminarBom dia, Ana Paula.
EliminarNão... Carlos não é Tito. São duas personagens distintas. Embora o Tito tenha sido um personagem real, que operou no Algarve entre 10 a 15 anos atrás, mas chamava-se Zito (felizmente, não o conheci, mas fui muitas vezes alertado contra ele, tal como o Sandro alerta o Valero)... o Carlos já é fruto da minha imaginação. Mas há que combinar as coisas, certo?
É sempre bem vindo ;)
EliminarPara encaixar a descrição de Tito, achei que podia ser Carlos, mas foi a minha imaginação a funcionar, fiz a ponte entre as personagens.
Na minha interpretação, podia haver ligação, senão a advertência sobre Tito é inusitada, caída no espaço da narrativa, um "floreado" (desculpa se foi errada, mas foi o que extraí).
Se houvesse ligação entre esses dois personagens, a trama teria de ter, forçosamente, outro rumo. E seria perfeitamente possível. Mas não me parece que a advertência seja um mero «floreado». É uma conversa de circunstância durante a longa viagem, da qual a narrativa podia prescindir, não deixo de concordar. Mas é também uma conversa de circunstância devidamente enquadrada no tema do Concurso... Não esqueça que o meu texto aborda, ainda que de um modo mais subtil, os vícios do trabalho, da fotografia, do sexo e do engate. E os personagens falam de quê? De sexo e de engates na Costa Algarvia... onde a referência ao Tito surge de um modo que não creio estar mal enquadrada, ou forçada. Julgo eu...
Eliminaracabei de ler, estou deliciada, adoro a ousadia e certamente você a possui na medida certa, agora entendo o poder do vício, já estou devidamente viciada em teus contos.
ResponderEliminarsim, amei. quero ler mais, como faço?
O Valero é um dos meus personagens mais queridos, está presente em muitos contos que publiquei - anteriormente, até 2008 - na revista Korpus.
EliminarPara já, tem de ficar no «aguardo», como dizem no Brasil. Em Dezembro, publicarei o meu primeiro romance: «Juno e Java». Se gostou do Valero, gostará também deste casal: o camponês Juno e o bailarino Java. Em 2016, vou dedicar-me a compilar todas as estórias (eróticas) que escrevi, tendo o Valero como protagonista, e publicá-las em livro (um ou mais volumes). Alguns contos já foram publicados na revista Korpus, outros permanecem inéditos.
certamente vou ler, já gostei do nome deles.
Eliminarquando sair avise. até mais.
Claro! O lançamento do romance será feito em conjunto com «A Bíblia dos Pecadores». Estou a esforçar-me por isso. Necessito de fazer uma revisão final aos textos antes de os enviar para a editora. Logo que envie, definiremos a data exacta do lançamento e divulgarei... não só nas minhas páginas e no blogue, como também nas redes sociais.
Eliminarlegal, realmente revisar é fogo, estou aqui tentando trabalhar e revisar o meu, para te enviar, finalmente, em cima do prazo.
EliminarMas gostei, isto que importa. até mais.
Tenho imensos textos para revisar em tão pouco tempo... os da «Bíblia» (faltam 30) e cerca de 50 capítulos do romance. Logo depois, vem a selecção de «Boas Festas»... e mais revisão! É dose...
EliminarPor isso, tive de adiar um pouco o início do novo projecto - o 1º Concurso Literário da Silkskin Editora, que também será muito trabalhoso
pois é, bota trabalho nisso.
EliminarO título é interessante.
ResponderEliminarE a leitura também, António Serzedelo. Leia que vai gostar. Garanto! Criei este personagem nos tempos em que vivia na Ilha Terceira, lembra?
EliminarLembro sim. A escrita é assim. Memórias de vida que voltam e revolvem se de outro modo.
Eliminarli e gostei... coisas que ja esqueci :) jp
ResponderEliminarObrigado, Jorge. Por mais anos que passem, há coisas que não se esquecem...
EliminarExcelente, Isidro!
ResponderEliminarObrigado, Guadalupe. Fico contente que tenha gostado.
EliminarEu não consegui concorrer. Fica para a próxima. Parabéns!
ResponderEliminarObrigado, Maria Ferreira. Brevemente, teremos um novo concurso com um tema bastante aliciante. Fique atenta! Dentro de uma semana, divulgaremos o regulamento. Se desejar, envie um email para silkskineditora@gmail.com, para que lhe possamos facultar todas as informações relacionadas.
EliminarFui ler o texto: muito forte, incisivo, fluido. Parabéns, mais uma vez!
ResponderEliminarObrigado, Ana Dias.
Eliminartrama muito bem entrelaçada, prende o leitor, não é maçante, e acima de tudo, muito original e intensa
EliminarObrigado, Jonnata Henrique.
EliminarUma verdadeira obra prima. Desprovido de modéstia e munido de uma satisfação intelectual incontida. Fiquei inundado nas páginas dessa bem entrelaçada história. Um enredo minimalista, original, com pitadas de sensualidade que temperam toda a trama, cativando e aguçando a vontade de ler que habita em nós. Apoteótico e brilhante desfecho, atemporal e particular criação. Parabéns meu amigo Isidro Sousa.
ResponderEliminarObrigado, Jonnata Henrique. Fico contente por teres gostado. Mas esta aventura não termina por aqui. No Algarve, irão ocorrer outros acontecimentos (no conto seguinte) protagonizados por estes três personagens (Valero, Sandro e Carlos). Haverá um quarto personagem, um amante italiano, para incendiar ainda mais a trama...
EliminarUm texto nu e cru mas extremamente real. Descrições detalhadas e um bom ritmo narrativo. Os meus parabéns!
ResponderEliminarGrato pelo seu comentário, Pedro Ferreira. Mas deixe-me dizer-lhe: se este texto é «nu e cru», imagine os restantes que fazem parte da mesma colecção. Considero este conto um dos mais simples, talvez o mais soft, de toda a colecção protagonizada pelo Valero.
EliminarInteressante o texto, mais parece não um conto, mas o primeiro capítulo de um romance, estou certo? O domínio das palavras indica sem dúvida talento amadurecido na área. É também muito interessante para um brasileiro ler um texto escrito por um português contemporâneo e observar as fascinantes diferenças no uso do idioma. Parabéns!
ResponderEliminarCaro amigo Ricardo Lohem, este texto não é o primeiro capítulo de um romance, mas um dos muitos textos que integram uma colecção de contos eróticos protagonizada por este personagem. Todos os contos têm tramas independentes, embora haja um fio condutor bastante subtil que os interliga a todos. Além do erotismo, existe a sombra de um crime (ocorrido no primeiro conto) sempre presente até ao último texto. O conto seguinte dá continuidade à aventura de Valero com este casal (Carlos e Sandro), mas a história entre eles termina aí. Os restantes textos envolvem outros personagens que se vão cruzando na vida de Valero, com enredos e emoções distintas. Pretendo, durante o próximo ano, fazer uma compilação de todos esses textos e - quiçá - publicá-los num livro.
EliminarParabéns, é uma bela obra.
ResponderEliminarEstou com uma dúvida: com aquele final surpreendente, tem continuação?
Obrigado, Tânia Tonelli. Sim, tem continuação num outro conto. Uma história independente, mas que surge na sequência daquela viagem. Não esquecer que o protagonista viaja ao Algarve para fazer uma sessão fotográfica. E só ainda está a chegar ao Algarve...
EliminarOusado, interessante, e como gostei certamente ficarei viciada em teus textos, e o susto de Valero foi mesmo o auge, claro que espero ler mais, porque agora quero saber sobre Tito.
ResponderEliminarObrigado, Akira Sam. Esta história tem continuidade no conto seguinte. Haverá um quarto personagem para incendiar a trama e o texto ficou bastante mais longo, no entanto, não envolve o Tito. Talvez pense nele para criar outra aventura...
EliminarIsidro, tens que nos oferecer a continuação da trama! Fiquei coladíssimo. Os meus parabéns!
ResponderEliminarObrigado, Tiago. Há muitas tramas protagonizadas por este personagem. Algumas já foram publicadas, outras permanecem inéditas. Por enquanto...
EliminarIsidro, adorei o Valério
ResponderEliminarTens que desenvolver a trama
Prevejo um triângulo amoroso intenso
O conto seguinte está finalizado e é Valero... não Valério.
EliminarBota intensidade nisso! Dois triângulos escaldantes entrelaçados.
Havy metal quanto baste. Impróprio para pessoas sensíveis...