PREFÁCIO
Numa tarde abrasadora, em pleno esplendor de Agosto do
ano 2015, a autora Guadalupe Navarro surgiu no meu percurso literário. Embora o
seu nome fosse familiar, de uma obra poética em que ambos participáramos no
início desse Verão, nunca havíamos trocado uma palavra. Ela abordou-me pelas
redes sociais, solicitando esclarecimentos sobre a antologia A Bíblia dos Pecadores, cujo regulamento
acabara de tornar público. Elucidada sobre a essência do projecto, que só
abrangia textos em prosa, volveu algo assim: «Eu sou poetisa, não escrevo prosa.»
Lamentou o facto de a nossa Bíblia de
Pecadores não contemplar poesia, reiterando o seu interesse em participar
numa obra colectiva tão instigante.
Exploradas todas as possibilidades, sem todavia conseguir
contornar essa limitação, Guadalupe Navarro acabou por considerar «Posso tentar
escrever um texto; talvez uma crónica...» e mencionou a ideia que, nesse
preciso momento, se lhe delineava na mente, sobre Sodoma e Gomorra. Recordando
que, meses atrás, eu também experimentara escrever poesia para uma antologia
poética, e fi-lo com êxito, incentivei-a de imediato: «Se sente vontade de
escrever uma estória, não hesite!» Ainda renitente, mostrando-se receosa em adentrar
num terreno desconhecido, aceitou o desafio, porém, salvaguardando que não se
comprometeria.
Nos dias subsequentes, à medida que ela cimentava pedra
sobre pedra naquela muralha em que se transformaria o texto, expunha-me ideias,
dava conta de avanços e recuos, receios e dificuldades, buscando sempre uma palavra
esclarecedora que facilitasse o contorno de obstáculos literários. Até que decidiu
mostrar as páginas que já redigira, ansiando que eu lhe transmitisse uma
opinião sincera.
Mal li os parágrafos iniciais, gargalhei. A trama, sobre
a bíblica esposa de Lot em estátua de sal transformada quando fugia do fogo devastador
disparado do céu sobre Sodoma, achava-se incompleta, todavia, vislumbrei logo
que se tratava de uma sátira inteligente, divertidíssima – uma relíquia! Era
difícil conter-me; as gargalhadas prevaleciam. Se até aí, porque desconhecia a
escrita de Guadalupe Navarro, receava transmitir alguma indicação, para não
constrangê-la ou melindrá-la, nesse instante a minha posição alterou
drasticamente. Fui peremptório: «Tem de concluir o texto! Sem qualquer
hesitação! É uma ordem! Força, Guadalupe!»
Entusiasmada, mergulhou com ainda mais afinco nesse
universo da prosa tão temeroso quão desafiante. Finalizou o trabalho. Quando me
chegou às mãos, li-o e reli-o; ainda hoje não canso de o reler. A autora nem
acreditava no fascínio que a sua estreia na prosa me despertara! Refiro-me a A Estátua de Sal, a mesmíssima sátira
sobre o episódio da destruição de Sodoma, abordando a falta de hospitalidade,
os excessos e a imoralidade que grassava nessa cidade remota, bem como as
incursões incestuosas daquelas filhas que, julgando-se sozinhas no mundo, embriagam
e seduzem o pai para, com ele, gerarem descendência. Essa estória, publicada em
2016 na antologia inaugural da Colecção Sui Generis, está compilada nas
primeiras páginas deste livro que se acha nas vossas mãos.
Daí em diante, a nossa cumplicidade, entre mim e a
autora, acentuar-se-ia de dia para dia, embora não houvesse convívio
presencial, somente comunicação virtual pelas redes sociais; e a amizade
crescendo, solidificando, uma confiança mútua enraizando-se. Guadalupe interessou-se
por todas as obras colectivas que eu viria a organizar na área da prosa, participando
nelas com regularidade. Nessa época (a Sui Generis ainda inexistia), concebi outra
antologia para a editora que então dinamizava, intitulada Boas Festas, dedicada ao Natal. A estória natalina (O Arrepio de Micaela, também incluída
neste livro), num registo diferente do texto anterior, que a autora fez chegar
às minhas mãos despertou-me igualmente a atenção. E ela foi mergulhando, de
modo crescente, no universo da prosa. Mostrava-me, inclusive, textos destinados
a projectos de outras editoras. Fosse qual fosse o tema envolvido em novas
antologias, ela fabricava imediatamente uma trama, visando participar. E que
tramas apresentava! Uma imaginação fértil, prodigiosa, que surpreende constantemente.
A sua capacidade de criar enredos complexos, quer sejam dramáticos ou humorísticos,
aliada ao elevado grau cultural (os conhecimentos sobre História são soberbos),
é incrível. E desenvolve cada tema com vontade férrea, inigualável, nunca
vacilando perante obstáculos, só respira quando finaliza cada trama. Foi desse
modo – atrevo-me a dizê-lo – que Guadalupe Navarro se viciou na construção de narrativas. Ao ponto de deixar para segundo
plano a escrita poética, em prol da prosa. Um universo verdadeiramente
irresistível que a emaranhou nas suas teias. Que a desafiou. Envolveu.
Fascinou. Aprisionou! E muita água deslizou sob a ponte desde que ousou
aventurar-se na espantosa e deslumbrante Estátua
de Sal.
Meses volvidos, em maré de confidências, ela revelaria pormenores
da vida pessoal que vi reflectidos no perfil de algumas personagens; falaria
também, despida de quaisquer complexos ou constrangimentos, sobre a paralisia
cerebral de que é portadora e a forte depressão que a afectava na época em que
me abordara. Naquele abençoado Verão de 2015 em que vários sonhos desencadearam
o primeiro passo rumo à realidade... Frisou publicamente o quão bem o meu
incentivo (a escrever prosa) lhe fizera, ajudando a superar essa fase menos boa
– às vezes, basta um estímulo, um simples empurrãozinho para se ultrapassar o
receio de falhar. Além disso, a solidariedade por ela manifestada, em momentos
críticos da minha trajectória editorial, para contornar situações assaz delicadas,
contribuiu mais ainda para aprofundar uma vera
amizade, tornando-nos confidentes literários. E daí a considerar a
possibilidade de editar uma obra pela Sui Generis, compilando textos redigidos
ao longo dos últimos tempos, foi um salto. Na realidade, este livro, que marca
um ciclo bastante significativo, verdadeiramente sui generis, no percurso da
autora.
Decifra-me...
ou Devoro-te! principia com o magnífico A Estátua de Sal, primeiro texto em prosa de Guadalupe Navarro,
destinado à antologia inaugural da Colecção Sui Generis, e finaliza com Mea Culpa, um drama igualmente inspirado
em episódios bíblicos, concebido propositalmente para o segundo volume da mesma
antologia, A Bíblia dos Pecadores.
Entre o primeiro e o derradeiro texto, desfilam uma dezena de contos e crónicas
de igual modo marcantes – estórias totalmente distintas, do drama à aventura, recheadas
de humor e uma certa malícia, ou mesmo sarcasmo, redigidas com uma simplicidade
sofisticada e, não raras vezes, uma ironia refinada, para as diversas obras
colectivas, em Portugal e no Brasil, em que a autora participou. São estórias aparentemente
simples, mas que se revestem de uma sensibilidade e uma intensidade profundas, explorando,
todas elas, universos verdadeiramente sui generis.
E o que dizer da galeria de personagens? Magistral!
Maioritariamente femininas, as personagens destas tramas
são figuras singulares, especiais, numa primeira vista um tanto “malucas”, mas
que se revelam seres humanos incríveis, salvo raras excepções, dotadas de grande
humanidade, as fragilidades mesclando com fortes personalidades, mostrando
fraquezas, mas também a força interior que delas emana.
Como a bela Micaela e os seus sintomáticos arrepios enquanto
se embrenha nos afazeres para o Natal ou a sensível e solitária Mónica, em A Máscara, a filha rejeitada que busca
forças no talento para colmatar o desprezo familiar e se enamora pelo homem
errado. E também a espevitada Ludmila e as suas deambulações vampíricas, em O Sonho, a enigmática Rosana cujo misterioso
retorno à sua cidade natal desperta atenções porventura indesejadas, em Riacho, e a atrevida e sofisticada Olga,
que se envolve carnalmente, em Mea Culpa,
com um membro do clero para tentar compreender uma antepassada por todos considerada
a mula sem cabeça da sua região. Sem olvidar a deliciosa discussão com Santo
António da exuberante narradora de O
Colar de Pérolas, que diverte com as peripécias libidinosas da madame inglesa
que “virou duquesa” e escandalizou a sociedade do seu tempo ao desencadear um
evento insólito, deveras incomum, que envolvia “homens sem cabeça”, e ainda a
destemida e imperturbável Rosa Martina, em A
Armadura de Sancho, que viaja pelos confins da História e convive com espectros
enquanto planeia instituir o dia especial (ou internacional) dos fantasmas,
desvendando a origem de alguns mitos ou superstições. E a histérica e inescrupulosa
editora Branca de O Casarão, autêntica
“amiga do alheio” inspirada em certas realidades que grassam no meio literário
e afectaram, de algum modo, a autora, é igualmente digna de registo. Ou de atenção!
Se as mulheres que embelezam estas estórias fascinam,
magnetizam, emocionam, fazem vibrar, as figuras masculinas, embora em desigualdade
numérica, são também envolventes, sedutoras, carismáticas. Veja-se o executivo,
jovem e elegante, que procura achar, em O
Lado Obscuro de Afonso, a mulher que a sua falecida avó consideraria ser “uma
moça decente” para casar, mas alimenta uma vivência sórdida, doentia, na clandestinidade,
algo inimaginável numa mente aparentemente sana. Ou o discreto e charmoso
António em A Mulher de Branco que
experimenta, após uma noite de diversão entre amigos, ainda que casualmente, um
encontro surreal, deveras inusitado, numa instigante narrativa que aborda o universo
fantástico, onde referências mitológicas marcam presença, como Daphne, a bela e
estonteante ninfa em frondoso loureiro transformada para escapar à perseguição
desenfreada de Apolo, o deus da beleza que lhe inspira profunda aversão.
A propósito, realçam-se referências às mitologias mas não
só; os frequentes contextos históricos também se destacam nestas peças
literárias, com inúmeras menções devidamente enquadradas a reis e rainhas, príncipes
e princesas, imperadores, pontífices e a outras personalidades emblemáticas ao
longo dos tempos, que denunciam o arraigado conhecimento, o elevado grau
cultural da autora, de que se socorre, vastas vezes, para caracterizar cenários,
personagens ou as ambiências que as rodeiam.
E não se pense que é tudo! O mundo infantil, aliado ao
reino animal, é recordado em Totó. Através
da visão de uma adorável tartaruga, exilada num jardim zoológico após um
acidente lhe ter danificado o casco, vamos conhecendo, numa narrativa
profundamente nostálgica, uma saudade de corroer a alma, as complexas relações
da sua família de acolhimento por tantos anos, que a adoptou como membro, onde
se incluem três crianças que a adoram, particularmente a menina mais nova que
“não é bem igual aos outros” e terá em si reflectido algo de autobiográfico, a
quem a autora empresta vivências ou emoções nitidamente pessoais.
As doze estórias que compõem as cento e cinquenta páginas
de Decifra-me... ou Devoro-te! são divinas,
irresistíveis, autênticos bálsamos para a alma. Estórias despretensiosas que
numa primeira instância podem afigurar-se bastante simples, porém, revestidas
de uma sofisticada complexidade; algumas aparentemente sem nexo mas de uma
profundeza intensa, de um humanismo sem igual, ricas na nobreza de sentimentos,
nos afectos ou nas relações interpessoais, bem como nos contextos em que são
inseridas, nas ambiências envolvidas. Estórias enigmáticas, magistrais, em que
cada protagonista, cada personagem, cada enredo convida à leitura... à viagem,
ao mergulho no seu universo, ao desafio de desvendá-la.
Estórias arquitectadas e levadas a cabo por uma alma
sensível, cativante, mulher guerreira, autora talentosa, um ser humano
deslumbrante que, independentemente de vicissitudes do foro pessoal, contagia
todos, à sua volta, com a magia das palavras que agora dispersa ao mundo nas
páginas deste livro. Palavras que deliciam, seduzem, envolvem. Palavras que
prendem, anestesiam, deleitam. Palavras que, atingida a derradeira linha de
cada trama, deixam sempre um sabor a pouco.
Decifra-me...
Ou Devoro-te! Ei-lo nas vossas mãos. Pois então, decifrem-no! Não
sejam devorados... pelo pecado da ignorância.
Isidro Sousa
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