PREFÁCIO
O mito é
um instrumento de materialidade das subjectividades do mundo; é uma narrativa
de carácter simbólico-imagético relacionada com determinada cultura, que
procura explicar e demonstrar, por meio da acção e do modo de ser das
personagens, a origem das coisas – de qualquer coisa que seja fantasiosa. E o
ser humano, procurando compreender o universo que o rodeia, criou mitos que
emergem como grandes metáforas capazes de sintetizar a forma como ele entende e
organiza o caos da Natureza e da Humanidade, bem como materializar o que há de
mais recôndito na sua alma. Surgem, então, seres monstruosos que corporificam
os receios, os horrores e até mesmo os desejos humanos, entidades que ganham
força através do mito, cristalizando-se no imaginário social ao mesmo tempo em
que colocam o ser humano diante de si mesmo – é como se, por intermédio destes
seres, pudéssemos descortinar o lado escuro de cada um de nós, revelando-nos
totalmente. É nesse contexto que se recorreu, através da literatura, à
mitologia romena para dar origem a uma figura eterna, misto de violência,
sensualidade, perigo e fascínio, que atravessaria os séculos: o vampiro.
A crença
em vampiros é remota; está documentada na antiga Babilónia, no Egipto, na
Grécia, na China, entre os Astecas e os Incas. O Livro dos Mortos egípcio
permite-nos entrever a fome e a sede insaciáveis das almas dos falecidos. Na
Grécia Antiga, a Empusa – um dos espectros de Hécate, que poderá ter inspirado
a lenda sobre os vampiros, uma vez que se alimentava de humanos com as presas
que se prolongavam dos seus caninos – levava os jovens que eram atraídos para a
sua cama à morte para lhes beber o sangue e comer a carne. No Talmude, livro
sagrado do Judaísmo, a primeira mulher de Adão foi Lilith e ela, por
desobedecer e abandonar Adão, foi transformada num monstro que perambulava à
noite em busca de vingança contra os filhos de Eva. Por sua vez, a crença em
íncubos e súcubos, popular durante a Idade Média, foi corroborada por Santo
Agostinho, ao escrever que os demónios tinham «imortalidade corporal e paixões
como os seres humanos», e por São Clemente, ao dizer que os demónios têm
paixões humanas mas não têm órgãos, usando para seu intento os órgãos dos seres
humanos ao deitarem-se por cima (íncubos) ou por baixo (súcubos) deles durante
a noite. No entanto, o termo “vampiro”, que vem do húngaro “vampir” e entrou na
Língua Portuguesa através do francês “vampire”, só passou a ser utilizado no
século XVIII.
Embora
tenham raízes antigas, os vampiros adquiriram proeminência na cultura ocidental
somente em finais do século XVII e início do XVIII. Entre 1720 e 1730, surgiram
relatos sobre vampirismo na imprensa do Leste Europeu: de criaturas misteriosas
que assombravam uma cultura ocupada em livrar-se, naquele momento, da
superstição e do irracionalismo. Quanto ao primeiro momento literário do
vampiro, ocorreu na poesia. Em 1748, o poeta alemão Heinrich August Ossenfelder
escreveu Der vampir, inspirado em discussões
académicas de cunho científico acerca da existência destes seres que dominavam
a Europa no século XVIII. Na prosa, a primazia é atribuída ao inglês John
Polidori, que estabelece, com o conto The
Vampyre (1819), as marcas do género e revela que o mito deixa de pertencer
apenas ao imaginário popular, passando definitivamente para os registos
literários. O seu vampiro, Lord Ruthven, era um aristocrata cosmopolita que se
misturava à sociedade do seu tempo e abriu caminho para o romance de James
Malcolm Rymer, Varney, The Vampyre or The
Feast of Blood (1847), uma obra de transição entre o conto de Polidori e as
obras Carmilla (1872) de Sheridan Le
Fanu e Drácula (1897) de Bram Stoker.
Com Le Fanu, surgiu a mulher vampira, personificação da figura feminina da
mulher fatal que encanta, seduz – a personagem que empresta o seu nome ao
título da obra, Carmilla, é uma vampira que ataca jovens mulheres, numa trama
com conotações lésbicas. Bram Stoker, por sua vez, revolucionou com o seu texto
epistolar as produções góticas da época, ao descortinar as aventuras de um ser
imortal preso à vida por ter em si uma amargura e um gosto maior por sangue, e
deixou marcado um perfil que definiria, daí em diante, a imagem do vampiro.
Desde a sua introdução no romance, o Conde Drácula é descrito como um homem de
maneiras requintadas e costumes excêntricos. Polido, bem-educado e com espírito
pesquisador, embora solitário, cujas demonstrações de violência não são
exactamente aterrorizantes, mas resultados da sua busca por alimento e de uma
sexualidade intensa que emerge como a sua principal característica.
Da
Europa à América, passando por outras regiões do Planeta, o vampiro começa a
ser utilizado como uma alegoria para o mal e a libido implícita da perversão
como forma de transgressão dos modelos de comportamento. Nesse início de
manifestação literária, ele é, sob todos os aspectos, o objecto que leva à
perversão, à transgressão da moral social. Sempre associado à beleza e à
promessa de prazer, é a personificação das nossas possíveis sublimações da
morte física, burlando a natureza mortal do ser humano. A temática da morte, do
sobrenatural, aliada a certa morbidez, encontrou neste cenário a sua melhor
personificação, já que o vampiro é o protótipo do homem sedutor, imortal, perverso,
que fascina todos e fatalmente os leva à desgraça.
Encarnando
o paradoxo, os vampiros são mortos-vivos, transgredindo a oposição entre vida e
morte, e não se reflectem no espelho, excedendo as alternativas de presença e
ausência. Nesta perspectiva, trazem consigo a sua violência e a sua
indiferença, reconhecidas pelo pensamento da tradição que conjuga as pulsões de
Eros e Tânatos. Apresentam, portanto, uma dimensão dionisíaca, pois estão
ligados ao prazer e à crueldade, à paixão e à morte. E estas personagens vão
descortinando, cada vez mais, as distorções de comportamento humano, de
devassidão, temas relacionados com o perverso e o monstruoso que vão ganhar
maior profundidade a partir das Crónicas
Vampirescas de Anne Rice, iniciadas em 1976. Com Anne Rice, o vampiro
Lestat já sintomatiza a condição pós-moderna: ele é um ser que vive na
errância, percorrendo séculos e continentes, totalmente à deriva,
confrontando-se com a impossibilidade de resposta à pergunta que o dilacera:
qual é o significado de tudo isto? Os vampiros de Anne Rice fazem emergir uma
consciência existencialista e melancólica ao mesmo tempo em que vivem o
conflito moral que envolve o acto de matar para se alimentar, quer tornando
isso um tormento eterno, quer transformando-o em fonte de satisfação, de
possibilidade para experimentar a diversidade e a novidade proporcionada pelos
séculos.
Salienta-se
ainda a forte erotização do vampiro que ganha novas dimensões, uma vez que tal
aspecto é associado à busca de alguém com quem vivenciar a imortalidade e a
sede de sangue. Se em Drácula o vampiro
ataca apenas mulheres, na obra de Anne Rice os vampiros atacam
indiscriminadamente aqueles que mais lhes despertam os seus desejos; contudo,
estes não se consumam porque o vampiro só é sexualizado no sabor que
experimenta com a morte da sua vítima – e, após a morte da vítima, ele
necessita de caçar outras vítimas, deixando um rasto de corpos exauridos no
próprio prazer. Não obstante, há casos particulares (raros) em que ele salva a
sua vítima da morte, transformando-a em vampiro, mas o corpo de outro vampiro é
incapaz de lhe proporcionar prazer, já que a fome voluptuosa do vampiro não
cessa jamais, nem pode ser aplacada por algo que não seja o sangue humano.
Imortalidade,
sedução, mistério, sexualidade, terror e suspense fazem deles personagens
fascinantes que amedrontam, atraem, seduzem. O vampiro, morto todavia vivo,
moldado nas sombras da sociedade, obcecado por sangue, incorpora o lado mais
escuro, porém, não menos real da existência humana; por outras palavras, o
vampiro literário imediatamente justapõe na sua figura tanto as luzes quanto as
sombras que alicerçam a vida humana.
Posta esta
explanação, olhemos para o livro que se acha nas vossas mãos, cujas narrativas
que o compõem abordam, de um modo ora intenso, excêntrico ou fantasioso, ora
superficial ou mesmo subtil, o tema dos vampiros. O repto para organizar esta
obra colectiva foi lançado em finais de 2015, sob o lema Terror e Sensualidade. Sete dezenas de cartazes, difundidos ao
longo de um par de meses nas redes sociais, exibiram (diariamente) imagens
bastante variadas, inspiradoras de novos enredos, às quais ninguém mostrou
indiferença nas duas margens do Atlântico. Cumprida a campanha, eis a selecção
de trinta e sete textos em diversos géneros; da aventura ao romance, do drama à
comédia, do policial à ficção científica, um pouco de tudo! Ordenados
alfabeticamente a partir dos nomes dos seus autores, são trechos variadíssimos
e foram escritos por trinta e sete autores – vinte e dois portugueses e quinze
brasileiros – distintos entre si, com diferentes sensibilidades, culturas,
idades, experiências de vida e estilos. Alguns foram já distinguidos em
concursos literários e certames similares, conquistaram prémios e menções
honrosas e têm obras individuais editadas, e outros continuam a estrear-se no
universo das letras numa edição Sui Generis; as suas biografias, embora
resumidas, podem ser consultadas no apêndice desta antologia.
Apresento-lhes,
então, O Beijo do Vampiro.
Boas leituras
vampirescas!
Isidro Sousa
Caro Isidro, estou sem palavras diante desse prefácio! Parabéns! A sua escrita é espetacular! Perfeitamente sistematizada, rica... Excelente! De coração, adorei!
ResponderEliminarGosto muito de histórias de vampiro, desde pequena... E foi uma pena não conhecer a Sui Generis a tempo de tentar participar dessa antologia. Mas estou lendo todos os excertos que você tem postado, e já é possível perceber a qualidade dos contos e como são interessantes! Parabéns a você e a todos os autores desta bela obra!
Neste prefácio, procurei apenas explicar o mito do tema vampiresco. Ainda bem que ele foi entendido...
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