03 junho, 2016

O BEIJO DO VAMPIRO - PREFÁCIO

PREFÁCIO
  
O mito é um instrumento de materialidade das subjectividades do mundo; é uma narrativa de carácter simbólico-imagético relacionada com determinada cultura, que procura explicar e demonstrar, por meio da acção e do modo de ser das personagens, a origem das coisas – de qualquer coisa que seja fantasiosa. E o ser humano, procurando compreender o universo que o rodeia, criou mitos que emergem como grandes metáforas capazes de sintetizar a forma como ele entende e organiza o caos da Natureza e da Humanidade, bem como materializar o que há de mais recôndito na sua alma. Surgem, então, seres monstruosos que corporificam os receios, os horrores e até mesmo os desejos humanos, entidades que ganham força através do mito, cristalizando-se no imaginário social ao mesmo tempo em que colocam o ser humano diante de si mesmo – é como se, por intermédio destes seres, pudéssemos descortinar o lado escuro de cada um de nós, revelando-nos totalmente. É nesse contexto que se recorreu, através da literatura, à mitologia romena para dar origem a uma figura eterna, misto de violência, sensualidade, perigo e fascínio, que atravessaria os séculos: o vampiro.

A crença em vampiros é remota; está documentada na antiga Babilónia, no Egipto, na Grécia, na China, entre os Astecas e os Incas. O Livro dos Mortos egípcio permite-nos entrever a fome e a sede insaciáveis das almas dos falecidos. Na Grécia Antiga, a Empusa – um dos espectros de Hécate, que poderá ter inspirado a lenda sobre os vampiros, uma vez que se alimentava de humanos com as presas que se prolongavam dos seus caninos – levava os jovens que eram atraídos para a sua cama à morte para lhes beber o sangue e comer a carne. No Talmude, livro sagrado do Judaísmo, a primeira mulher de Adão foi Lilith e ela, por desobedecer e abandonar Adão, foi transformada num monstro que perambulava à noite em busca de vingança contra os filhos de Eva. Por sua vez, a crença em íncubos e súcubos, popular durante a Idade Média, foi corroborada por Santo Agostinho, ao escrever que os demónios tinham «imortalidade corporal e paixões como os seres humanos», e por São Clemente, ao dizer que os demónios têm paixões humanas mas não têm órgãos, usando para seu intento os órgãos dos seres humanos ao deitarem-se por cima (íncubos) ou por baixo (súcubos) deles durante a noite. No entanto, o termo “vampiro”, que vem do húngaro “vampir” e entrou na Língua Portuguesa através do francês “vampire”, só passou a ser utilizado no século XVIII.

Embora tenham raízes antigas, os vampiros adquiriram proeminência na cultura ocidental somente em finais do século XVII e início do XVIII. Entre 1720 e 1730, surgiram relatos sobre vampirismo na imprensa do Leste Europeu: de criaturas misteriosas que assombravam uma cultura ocupada em livrar-se, naquele momento, da superstição e do irracionalismo. Quanto ao primeiro momento literário do vampiro, ocorreu na poesia. Em 1748, o poeta alemão Heinrich August Ossenfelder escreveu Der vampir, inspirado em discussões académicas de cunho científico acerca da existência destes seres que dominavam a Europa no século XVIII. Na prosa, a primazia é atribuída ao inglês John Polidori, que estabelece, com o conto The Vampyre (1819), as marcas do género e revela que o mito deixa de pertencer apenas ao imaginário popular, passando definitivamente para os registos literários. O seu vampiro, Lord Ruthven, era um aristocrata cosmopolita que se misturava à sociedade do seu tempo e abriu caminho para o romance de James Malcolm Rymer, Varney, The Vampyre or The Feast of Blood (1847), uma obra de transição entre o conto de Polidori e as obras Carmilla (1872) de Sheridan Le Fanu e Drácula (1897) de Bram Stoker. Com Le Fanu, surgiu a mulher vampira, personificação da figura feminina da mulher fatal que encanta, seduz – a personagem que empresta o seu nome ao título da obra, Carmilla, é uma vampira que ataca jovens mulheres, numa trama com conotações lésbicas. Bram Stoker, por sua vez, revolucionou com o seu texto epistolar as produções góticas da época, ao descortinar as aventuras de um ser imortal preso à vida por ter em si uma amargura e um gosto maior por sangue, e deixou marcado um perfil que definiria, daí em diante, a imagem do vampiro. Desde a sua introdução no romance, o Conde Drácula é descrito como um homem de maneiras requintadas e costumes excêntricos. Polido, bem-educado e com espírito pesquisador, embora solitário, cujas demonstrações de violência não são exactamente aterrorizantes, mas resultados da sua busca por alimento e de uma sexualidade intensa que emerge como a sua principal característica.

Da Europa à América, passando por outras regiões do Planeta, o vampiro começa a ser utilizado como uma alegoria para o mal e a libido implícita da perversão como forma de transgressão dos modelos de comportamento. Nesse início de manifestação literária, ele é, sob todos os aspectos, o objecto que leva à perversão, à transgressão da moral social. Sempre associado à beleza e à promessa de prazer, é a personificação das nossas possíveis sublimações da morte física, burlando a natureza mortal do ser humano. A temática da morte, do sobrenatural, aliada a certa morbidez, encontrou neste cenário a sua melhor personificação, já que o vampiro é o protótipo do homem sedutor, imortal, perverso, que fascina todos e fatalmente os leva à desgraça.

Encarnando o paradoxo, os vampiros são mortos-vivos, transgredindo a oposição entre vida e morte, e não se reflectem no espelho, excedendo as alternativas de presença e ausência. Nesta perspectiva, trazem consigo a sua violência e a sua indiferença, reconhecidas pelo pensamento da tradição que conjuga as pulsões de Eros e Tânatos. Apresentam, portanto, uma dimensão dionisíaca, pois estão ligados ao prazer e à crueldade, à paixão e à morte. E estas personagens vão descortinando, cada vez mais, as distorções de comportamento humano, de devassidão, temas relacionados com o perverso e o monstruoso que vão ganhar maior profundidade a partir das Crónicas Vampirescas de Anne Rice, iniciadas em 1976. Com Anne Rice, o vampiro Lestat já sintomatiza a condição pós-moderna: ele é um ser que vive na errância, percorrendo séculos e continentes, totalmente à deriva, confrontando-se com a impossibilidade de resposta à pergunta que o dilacera: qual é o significado de tudo isto? Os vampiros de Anne Rice fazem emergir uma consciência existencialista e melancólica ao mesmo tempo em que vivem o conflito moral que envolve o acto de matar para se alimentar, quer tornando isso um tormento eterno, quer transformando-o em fonte de satisfação, de possibilidade para experimentar a diversidade e a novidade proporcionada pelos séculos.

Salienta-se ainda a forte erotização do vampiro que ganha novas dimensões, uma vez que tal aspecto é associado à busca de alguém com quem vivenciar a imortalidade e a sede de sangue. Se em Drácula o vampiro ataca apenas mulheres, na obra de Anne Rice os vampiros atacam indiscriminadamente aqueles que mais lhes despertam os seus desejos; contudo, estes não se consumam porque o vampiro só é sexualizado no sabor que experimenta com a morte da sua vítima – e, após a morte da vítima, ele necessita de caçar outras vítimas, deixando um rasto de corpos exauridos no próprio prazer. Não obstante, há casos particulares (raros) em que ele salva a sua vítima da morte, transformando-a em vampiro, mas o corpo de outro vampiro é incapaz de lhe proporcionar prazer, já que a fome voluptuosa do vampiro não cessa jamais, nem pode ser aplacada por algo que não seja o sangue humano.

Imortalidade, sedução, mistério, sexualidade, terror e suspense fazem deles personagens fascinantes que amedrontam, atraem, seduzem. O vampiro, morto todavia vivo, moldado nas sombras da sociedade, obcecado por sangue, incorpora o lado mais escuro, porém, não menos real da existência humana; por outras palavras, o vampiro literário imediatamente justapõe na sua figura tanto as luzes quanto as sombras que alicerçam a vida humana.

Posta esta explanação, olhemos para o livro que se acha nas vossas mãos, cujas narrativas que o compõem abordam, de um modo ora intenso, excêntrico ou fantasioso, ora superficial ou mesmo subtil, o tema dos vampiros. O repto para organizar esta obra colectiva foi lançado em finais de 2015, sob o lema Terror e Sensualidade. Sete dezenas de cartazes, difundidos ao longo de um par de meses nas redes sociais, exibiram (diariamente) imagens bastante variadas, inspiradoras de novos enredos, às quais ninguém mostrou indiferença nas duas margens do Atlântico. Cumprida a campanha, eis a selecção de trinta e sete textos em diversos géneros; da aventura ao romance, do drama à comédia, do policial à ficção científica, um pouco de tudo! Ordenados alfabeticamente a partir dos nomes dos seus autores, são trechos variadíssimos e foram escritos por trinta e sete autores – vinte e dois portugueses e quinze brasileiros – distintos entre si, com diferentes sensibilidades, culturas, idades, experiências de vida e estilos. Alguns foram já distinguidos em concursos literários e certames similares, conquistaram prémios e menções honrosas e têm obras individuais editadas, e outros continuam a estrear-se no universo das letras numa edição Sui Generis; as suas biografias, embora resumidas, podem ser consultadas no apêndice desta antologia.

Apresento-lhes, então, O Beijo do Vampiro.

Boas leituras vampirescas!


Isidro Sousa

2 comentários:

  1. Caro Isidro, estou sem palavras diante desse prefácio! Parabéns! A sua escrita é espetacular! Perfeitamente sistematizada, rica... Excelente! De coração, adorei!
    Gosto muito de histórias de vampiro, desde pequena... E foi uma pena não conhecer a Sui Generis a tempo de tentar participar dessa antologia. Mas estou lendo todos os excertos que você tem postado, e já é possível perceber a qualidade dos contos e como são interessantes! Parabéns a você e a todos os autores desta bela obra!

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    1. Neste prefácio, procurei apenas explicar o mito do tema vampiresco. Ainda bem que ele foi entendido...

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