12 junho, 2017

INTRODUÇÃO DO CONTO «OS AMIGOS DE MALACHI» INCLUÍDO NA ANTOLOGIA «NINGUÉM LEVA A MAL»



O relógio marca meia-noite menos vinte e o ambiente no Queer, cujas portas se abriram às onze, está ainda “morno”. O disc-jockey Miguel Kano, que entrou ao serviço mais cedo do que habitualmente, vai debitando os sons enquanto o bar se vai compondo, à medida que vão chegando pessoas, na sua maioria homens jovens.
No bar principal, o fotógrafo Valero sorve uns goles da sua cerveja e espia os fantasiados que, entretanto, vão surgindo. Após inspeccionar a máquina fotográfica, pousa-a no balcão e pede a Jaime que lhe guarde a pesada mochila na copa enquanto vai dar uma volta pelas outras “capelinhas”. É a noite de Halloween, tem de fazer a sua reportagem fotográfica percorrendo todos os estabelecimentos de diversão nocturna daquele bairro na expectativa de captar as melhores imagens.
– Detesto andar carregado de tralha quando trabalho – justifica-se, arqueando as sobrancelhas – e não dá jeito nenhum pedir constantemente, quer num balcão quer aos porteiros, que me guardem a mochila. E logo nesta noite, que as casas devem estar ao rubro!
– Vai tranquilo, rapaz. Faz um bom trabalho e não te preocupes com a mochila. Aqui fica segura – sussurra Jaime, retirando-a do balcão. – Mas tem cuidado para não seres assaltado! Esconde a máquina dentro do casaco, não andes a exibi-la na rua.
– Vira essa boca para lá! Já bastam as que me roubaram! Mas hoje não há grande perigo, anda imensa gente na rua e os larápios não arriscam.
– Vais fazer uma reportagem e tanto! Hoje tens resmas de manas fantasiadas para fotografar. Alguma edição especial sobre o Halloween?
– O portfólio do costume, como nos outros anos – responde o fotógrafo, com um certo desdém. – Estou a pensar seriamente numa exposição. Há anos que acompanho o Halloween e o meu arquivo acumula milhares de imagens inéditas. Seleccionando as melhores e mais algumas que faça hoje, quiçá.
– Outra cerveja? – sibila o barman, quando ele termina de beber. – Oferta da casa.
– É pá, não posso exagerar. A noite é ainda uma criança e espera-me um longo trabalho pela frente. Mas aceito. – Mal proferira estas palavras e Jaime já lhe substituía a garrafa vazia por outra cheia. – És um amor. Thanks.
– Para quando será essa exposição? E onde?
– Ainda não agendei data nem local, mas isso resolve-se, é fácil.
– As bichas vão ficar malucas ao verem as suas fotos expostas. Oh, se vão! Vaidosas como são...
– Nem te conto, Jaime! Só de lembrar que há meia dúzia de anos todas fugiam da objectiva e dos flashes... agora não me largam a pila. Nem consigo respirar!
– A exposição será baseada apenas em imagens, como as reportagens fotográficas e os portfólios que publicas, ou tens algo mais concreto em mente?
– Estudei a história do Halloween, é deveras curiosa. A maioria das pessoas pensa que é simplesmente mais um evento concebido e exportado pelos americanos, como o Gay Pride. Enganam-se! As origens do Halloween são muito antigas, remontam à Antiguidade. Tem quase três mil anos e uma relação particularmente curiosa com a Igreja Católica.
– Confesso a minha ignorância nessa matéria. Sempre vi o Halloween como um Carnaval gay fora de época, mas com bruxas, abóboras e vassouras.
– É conhecido como a Noite das Bruxas em parte graças à Igreja Católica.
– Como assim? – Jaime mostra-se curioso e Valero descreve a história do evento.
A noite de Halloween festeja-se de 31 de Outubro para 1 de Novembro e foi sempre combatida pela Igreja Católica por ser comemorada na véspera do Dia de Todos os Santos. A sua origem remonta às tradições dos antigos povos celtas que habitaram a Gália e as ilhas da Grã-Bretanha entre os anos 600 a.C. e 800 d.C. e situavam o Ano Novo no dia 1 de Novembro, durante as festividades do Samhain, evento do calendário celta que celebrava o fim do Verão e o início do Ano Novo e, além disso, tinha como objectivo dar culto aos mortos, continuando a ser comemorado paralelamente às práticas cristãs, em particular na Irlanda católica, Escócia, Gales, Cornualha e noutras regiões de cultura céltica das Ilhas Britânicas.
A invasão das Ilhas Britânicas pelos Romanos mesclou a cultura latina com a celta e, em finais do Século II, com a evangelização desses territórios, a religião dos Celtas, chamada druidismo, tinha desaparecido na maioria das comunidades. Pouco se sabe sobre essa religião, mas sabe-se que o Festival do Samhain ocorria entre 30 de Outubro e 2 de Novembro, a meio caminho entre o equinócio de Verão e o solstício de Inverno, e a “festa dos mortos” era uma das suas datas mais importantes, sendo celebrada com rituais presididos pelos sacerdotes druidas que actuavam como médiuns entre as pessoas e os seus antepassados. Dizia-se também que os espíritos dos mortos voltavam nessa data para visitar os seus antigos lares e guiar os seus familiares rumo ao outro mundo.
A relação da comemoração desta data com as bruxas terá iniciado na Idade Média no seguimento das perseguições incitadas por líderes católicos, sendo conduzidos julgamentos pela Inquisição (esta perseguia os praticantes de rituais pagãos como os celtas), com o intuito de condenar quem fosse considerado curandeiro ou pagão. O alvo de tal suspeita era taxado de bruxo, ou bruxa, com elevado sentido negativo e pejorativo, devendo ser julgado pelo Tribunal do Santo Ofício e, na maioria das vezes, queimado na fogueira nos chamados autos-de-fé. Essa designação perpetuou-se e, no Século XIX, esta comemoração de origem pagã foi levada por emigrantes irlandeses (povo de etnia e cultura celta) até aos EUA, onde a tolerância religiosa era maior e a continuidade de festejos pagãos como o Halloween – termo inglês, inicialmente chamado de All Hallow’s Even (noite que antecede o dia de Todos os Santos) e posteriormente reduzido para Halloween – não tinha barreiras culturais ou qualquer constrangimento. E foi aí, em terras norte-americanas, que essa noite passou a ser conhecida como a Noite das Bruxas.
Presentemente, a festa do Halloween pouco tem a ver com as suas origens: só restou uma alusão aos mortos, mas com um carácter distinto. Além disso, foi sendo incorporada uma série de elementos estranhos às festas de Finados e de Todos os Santos. Na celebração actual nota-se a presença de muitos desses elementos: abóboras em forma de caras assustadoras (sem polpa e com velas acesas), bruxas a voarem por cima dos alpendres das casas e crianças vestidas de formas bizarras a andarem de casa em casa, à noite, a pedir doces, frutas ou prendas. As fantasias, enfeites e outros itens usados neste evento estão repletos de bruxas, vampiros, gatos pretos, fantasmas, esqueletos, espíritos, feiticeiros, espantalhos, múmias, mortos-vivos e toda a espécie de monstros horríveis, com decorações de trevas e de medo fora e dentro das casas, que às vezes chegam a ter conotações verdadeiramente satânicas.
– Nos dias de hoje o Halloween é universal, comemora-se em todo o mundo – prossegue Valero, finalizando a narrativa. – Na noite gay de Lisboa é considerado um segundo Carnaval e começou a festejado em 1992, no mais antigo bar gay da Rua de São Marçal, no Príncipe Real. Há tempos, um dos seus proprietários afirmou mesmo numa entrevista ao jornal Púbico: «O nosso foi o primeiro bar gay a fazer o Halloween, em 1992. Se alguém o fazia antes, não se falava. Nos anos seguintes surgiram mais bares a festejá-lo porque é divertido, é mais uma noite temática, é um Carnaval adicional ao que já existe. A ideia pegou e agora todas as casas o fazem». – Vendo os ponteiros do relógio a marcarem meia-noite e dez, termina a cerveja de um gole e despede-se. – Bem rapaz, está na hora, tenho de me pirar. Volto lá pelas duas, duas e meia. Até já!

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Excerto/Introdução do meu conto «Os Amigos de Malachi»
Incluído na antologia carnavalesca «Ninguém Leva a Mal»
Da Colecção Sui Generis

Livro à venda na livraria online da Euedito
Neste endereço: www.euedito.com/suigeneris


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