PREFÁCIO
A literatura
policial fascina-me desde que li o primeiro livro deste género. Achei-o numa
das visitas iniciais, durante a adolescência, à Biblioteca Municipal de
Moimenta da Beira, da qual me tornaria frequentador assíduo; esta biblioteca
regional, instalada na conceituada Casa das Guedes, era o meu refúgio quando saía
da escola. Perscrutando estantes repletas de livros, chamaram-me a atenção as prateleiras
reservadas aos policiais. Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Erle Stanley
Gardner, Patrícia Highsmith, Jorge Ibargüengoitia e Ruth Rendell são alguns
autores cujas obras devorei sofregamente.
Sim, devorei literalmente todos os livros
que encontrei destes autores e não só, tornando-se o género policial, desde
logo, a minha leitura predilecta. Heróis da cena policial como Miss Marple, Hercule
Poirot, Sherlock Holmes ou Perry Mason encantavam-me. E se mais não li foi porque
não havia; ou talvez não achasse...
Foi igualmente
nessa época que a minha veia literária despertou. Embora já redigisse, nas
aulas de Português, pequenas estórias à laia de redacções, quase nada ou pouco elaboradas,
seria a rainha do policial Agatha
Christie (ou inspirado nela), após ter lido uma reportagem sobre a sua vida e
dezenas dos seus livros, quem me faria aventurar em algo maior... na minha
primeira obra literária: uma novela. A temática, influenciado pelas leituras de
então, não poderia ser outra: policial. Talvez devido ao factor idade, fiz de
um jovem estudante – um adolescente de 14 ou 15 anos, tal como o seu criador –
o meu Hercule Poirot, construindo uma
trama que se ambientava numa escola secundária provinciana, algures na Beira
Alta, um estabelecimento de ensino fictício inspirado naquele que frequentei, no
qual uma aluna pereceria. Suicídio ou assassínio era a (principal) questão que
dominava toda a narrativa, sendo esclarecida somente nas derradeiras páginas.
Mantive esse personagem adolescente, um estudante perspicaz com ares de
detective, noutras novelas juvenis que concebi nessa altura, tendo-o recuperado
mais tarde, volvidas cerca de duas décadas, para protagonizar uma obra de maior
fôlego, sendo agora um homem maduro, jornalista bem-sucedido, que larga a monotonia
da advocacia para se dedicar à emoção da investigação e procura desvendar várias
mortes misteriosas, ocorridas sem qualquer elo de ligação, ao longo de um bastante
complexo serial killer.
E atrevi-me, ainda
nos meus tempos de estudante, enquanto redigia a referida novela, a apresentar,
num concurso literário promovido lá na escola, o primeiro conto que ousei
mostrar: uma estória policial dactilografada em duas folhas, o mesmo texto que,
transcorridas quase três décadas, resgataria da gaveta para o rever, amadurecendo
e desenvolvendo algumas partes da narrativa, sem alterar a linha original, com
o firme propósito de o incluir na primeira antologia literária dedicada ao
género policial que decidi organizar.
Quanto à literatura
policial, esta é caracterizada, regra geral, pela presença, na sua estrutura
narrativa, de (pelo menos) um crime, da sua investigação e da revelação do
malfeitor. Neste género literário, o foco remete para o processo de elucidação
do mistério, empreitada a cargo de um detective, seja ele profissional ou
amador. A essência da narrativa policial é a busca da identidade desconhecida,
pela totalidade dos indícios, achando-se sempre (ou quase sempre) o criminoso
entre quem menos se espera, ou suspeita, demonstrando que não pode haver crime
perfeito, logo, não há lugar para a impunidade, isto é, para o crime sem
punição, como sucede habitualmente nas obras de Agatha Christie e de Erle
Stanley Gardner.
O texto de minha
autoria inserido nesta antologia desvia-se um pouco desse padrão. Apresenta, numa
“primeira vista” como sendo a trama principal, um episódio num restaurante perpetrado
por um casal de marginais dedicados ao roubo que acabará por ser detido, no
entanto, verifica-se em paralelo, na mesma trama, com alguma subtileza, uma
sucessão de delitos bastante mais graves do que o acto de roubar, crimes
hediondos praticados há muitos anos cuja autoria só será conhecida num momento de pânico – em que a personagem que os cometeu,
escondida sob a máscara de pessoa virtuosa e acima de qualquer suspeita, é
confrontada com outra situação assaz perigosa e, vendo a sua vida de novo em
perigo, rememora o mal que fizera no passado. Aqui, esses crimes mostram um rosto porque a pessoa que os executou, deixando-se levar pelas
emoções, confessa-se ao leitor sob a forma de dolorosas recordações, associando-lhes
o seu rosto somente nestas circunstâncias, algo que difere na maioria das obras
dos autores anteriormente citados; contudo, estes crimes permanecem sem rosto na investigação policial.
Com o lançamento da
Colecção Sui Generis, e após tantos e variados temas já terem sido abordados
nas suas obras colectivas, era inevitável que viesse a organizar uma antologia dedicada
ao policial, especialmente quando o próprio organizador, apesar de apreciar
diversos géneros literários, é amante aficionado da literatura policial. Uma Antologia
de Contos Policiais jamais poderia ser olvidada nesta Colecção! Todavia, em Crimes Sem Rosto não se impõe a fórmula
que exige a presença de um crime e do respectivo investigador para o desvendar.
Haja ou não haja detectives ou personagens com funções similares envolvidos, podemos
criar um bom enredo com contornos policiais. Mais do que a comparência (ou
inexistência) do investigador que apresenta soluções, privilegia-se, nos textos
deste livro, a presença de um ou de vários crimes sem rosto, logo, não desvendados, cujo mistério é ou pode ser conhecido
apenas pelo leitor.
São disso exemplo
os contos de Grazielle Pacini Segeti, Manuel Amaro Mendonça e Teresa Morais. No
primeiro caso, as polícias chilena e brasileira que investigam a morte de uma
mulher num tonel de vinho não chegam ao autor desse crime, que se revela somente
ao leitor. No segundo caso, um jantar natalício que decorre na tranquilidade
familiar só é perturbado pela notícia de outro homicídio ocorrido em escassos
meses, sem que a polícia vislumbre qualquer pista que a conduza ao assassino, mas
o leitor vê-lo-á a desfazer-se da arma do crime. No terceiro caso, a autoria
dos assassinatos que abalam uma pacata aldeia, cometidos por uma reservada mas afável solteirona, apenas
interessada no seu tricot e na sua jardinagem, só será revelada na mente da
criminosa. Cito ainda o texto confessional de William Schmahl Barros cuja
protagonista desprovida de algum tipo de
arrependimento ou remorso se desnuda assumindo os seus crimes para
justificar o seu sucesso profissional: Todas
as mortes foram necessárias para que eu me tornasse quem sou hoje. Podia mencionar
mais exemplos, mas não me parece conveniente expor a totalidade dos contos
neste prefácio. E se a obra no seu todo contém outras estórias cujos crimes
narrados se desvendam no decorrer das tramas, afastando-se do tema proposto, não
deixa de ser verdade que, pelo menos por algum tempo, os mesmos ter-se-ão
mantido sem rosto.
Na cena real, inúmeros
crimes permanecem demasiado tempo sob investigação até que a verdade seja conhecida,
mas também há aqueles cujos malfeitores nunca são descobertos. Ainda que, por
vezes, se verifique (em assassínios, por exemplo) algum crime perfeito, sem qualquer rosto associado, a maioria dos casos acaba
sempre por ganhar, mais cedo ou mais tarde, um rosto. Nos textos que integram esta antologia literária, escritos
por 18 autores portugueses e brasileiros, mais importante do que a solução do
crime, ou a revelação do criminoso, é a existência do crime que não é desvendado
na sociedade em que se insere, logo, que não tenha um rosto visível, apesar de,
com bastante frequência, os autores desses crimes deixarem transparecer ao
leitor, nalgum momento, as suas façanhas.
Boas leituras!
Isidro Sousa
CRIMES SEM ROSTO
Antologia de Contos Policiais
Autores: Vários Autores
Organização e Coordenação: Isidro Sousa
Colecção Sui Generis
Editora Euedito
ISBN: 978-989-8856-58-6
Depósito Legal: 429168/17
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