08 junho, 2017

EXCERTO DO CONTO «O SEGREDO DE LEONARDO» INCLUÍDO NA ANTOLOGIA «SALOIOS & CAIPIRAS»




Ao ouvir as palavras do irmão sobre a reacção de Américo, quando o senhor Jacinto lhe insinuara a possibilidade de um dia a sua irmã mais nova se sujeitar ao mesmo perigo que a filha do ferreiro sofreu, Henrique fica mais assustado do que já estava. Não que ele tenha medo do irmão da namorada, mas teme o senhor Ramiro Pereira, seu futuro sogro.
– Que vou eu fazer à minha vida, Leonardo?
– Fizeste munto mal em deitar-te com a Irene. Agora, tens de casar depressa com ela, antes que a barriga apareça. Senão... se o pai dela sabe nem te deixa casar. Mata-te logo! A coitada da Irene ainda fica viúva antes do tempo, e c’um filho na barriga. Queres isso?
– Tu sabes que eu sempre quis, desde miúdo, casar com a Irene. Mas assim, às pressas? Sem nenhum dinheiro comigo? Todo o povo vai desconfiar!
– Num tens outro remédio. Rique, faz das tripas coração, mas casa-te rápido. Fala com o tio Ramiro antes que ele descubra.
– Ó Leonardo, tu estás doido ou quê? Daqui a nada vou para a tropa e só volto daqui a dois ou três anos. Como queres que lhe fale em casório?
– Tens alguma ideia melhor? Se num falas com o tio Ramiro, pretendes fazer o quê? Partir para o Ultramar e deixar a Irene desonrada?
– Claro que não!
– Então, num tens escolha.
– Oh, sorte malvada! Para que é que fui dormir com a Irene? Está certo que me soube bem, mas ela tinha de ficar de barriga assim tão cedo, antes de ter a minha vida arranjada? Puta de sina! Como se não bastasse sermos pobres, ela ainda tem o raio de uma família brava como as cobras.
– Preocupa-te só com o tio Ramiro, que eu trato do Mérico. Mais logo, nós vamos ao baile de Chã das Naves e falo-lhe de vós.
– Vê lá o que vais fazer, ó Leonardo!
– É melhor contar-lhe no meio do baile, como quem num quer a coisa. Assim, ele num fica tão bravo. Se ficar, num há-de querer descarregar a raiva no meio de todo o mundo. O Mérico num vai querer que o povo saiba que a irmã dele está de esperanças, pois não?
– Ó Leonardo, num me compliques mais a vida, por favor!
– Só quero ajudar. Rique, tu és meu mano e eu vou-te valer, quer tu queiras quer não. Se conseguir controlar a raiva do Mérico, podes crer que já faço munto. Mas fala ao tio Ramiro! Diz-lhe que tu e a Irene querem deixar a vossa vida acertada, antes de ires embora. Dois ou três anos em África é munto tempo. Diz-lhe que tens medo de que a Irene num espere por ti... sempre lhe pode aparecer outro rapaz e ela casar com ele, num é? Diz-lhe mesmo que tens medo de que lhe possa acontecer alguma desgraça, como fizeram à Donzília do ferreiro. O povo, hoje, num fala doutra coisa. Pega nessa desculpa e conversa com o pai da Irene!
– Num sei, Leonardo. É complicado dizer-lhe que emprenhei a filha dele.
– Num digas isso! No ano que vem, o Mérico parte também para o Ultramar. A Irene vai ficar sozinha, sem o irmão a defendê-la da rapaziada. E ela é tão bonita! Contigo e o Mérico em África, num hão-de faltar cães à sua volta. Mesmo que ela te queira guardar respeito, pode haver algum malvado que abuse dela. Nunca se sabe, não é? Pois então faz o que eu te digo, Rique! O tio Ramiro há-de entender que, se tu fores solteiro para África, tens medo de que algum mal suceda à Irene.
– Mas ele vai desconfiar desta pressa toda! E aí, o caldo entorna-se.
– Quando descobrir, já tens o casamento marcado. A raiva num será tanta porque já estás a compor a coisa. Verás que o tio Ramiro num há-de deixar ninguém saber que a filha vai casar de bucho cheio. E na altura em que o povo perceber, se alguém perceber, vós já estareis casados.
– Olha, acho melhor eu e a Irene falarmos com o senhor padre. É isso, Leonardo! Peço ao senhor padre que nos case em segredo. Fujo com ela e voltamos, já casados, daqui a uns dias.
– Nem penses numa asneira dessas!
– E porque não? Só quero arranjar uma saída.
– Rique, pela alma do nosso pai, tem calma! Tudo há-de ajeitar-se.
– Ajeitar como, Leonardo?
Subitamente, Leonardo cala-se. Henrique dirige o olhar para a porta da loja e depara com a irmã. A miúda olha de um para o outro, como que incrédula, embasbacada.
– Que foi, Manuela? – pergunta Henrique, ignorando por completo as palavras que acabara de proferir. – Que estás aí a fazer?
– A mãe pediu... – balbucia a menina, mas mal consegue falar.
– Diz, Nelinha – incentiva-a Leonardo. – O que é que a mãe pediu?
– Cavacos. A fogueira está quase a apagar-se. Num há lenha em casa.
– Já os levamos – afirma Henrique. – A mãe quer mais alguma coisa?
– Não, Rique. O que é que tu... disseste ao Leonardo?
– Nada de especial, Nelinha – responde Leonardo, antecipando-se ao irmão. – O Rique só estava a brincar. Agora volta para casa, volta. Diz à mãe que nós já vamos.
Manuela dá meia volta, vai à horta colher folhas de couve e segue pelo carreiro. Os irmãos observam-na até a perderem de vista. Questionam-se sobre o que ela teria escutado, e se terá entendido o que eles diziam. Pelo sim pelo não, decidem concluir rapidamente as tarefas com as vacas e retornar logo a casa, com os braços carregados de cavacos.

Manuela, ao entrar na cozinha, revela à mãe o que ouvira. Todavia, as suas palavras são tão imprecisas que Dona Isabel não acredita nela. Na verdade, com o falatório que corre em Tarapata sobre o infortúnio de Donzília, a filha do ferreiro de Corga da Raposa “emprenhada pelo namorado” e posteriormente “abusada por um bando de camaradas dele” no Monte da Raposa, Dona Isabel julga que a filha se refere a essa rapariga e citou, por lapso, o nome de Irene. Talvez porque Irene seja a namorada do irmão. Talvez porque o ouvisse a falar também sobre Irene. Ainda assim, repreende-a por “escutar mal aquilo que os outros dizem” e manda-a calar. Manuela fica amuada e refugia-se no seu quarto, para não levar mais raspanetes.


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Excerto do meu conto «O Segredo de Leonardo»
Incluído na antologia luso-brasileira «Saloios & Caipiras»
Da Colecção Sui Generis

Livro à venda na livraria online da Euedito
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