09 julho, 2015

A EMOÇÃO DE CELINA



João Carlos era um rapaz bonito de vinte e dois anos de idade, descendente de uma ilustre linhagem de Vila Rica, mimado pelos luxos da vida que a família Melgaço lhe ofertava, perene aspirante por imposição paterna ao curso de Medicina que detestava; ao invés de estudar, preferia multiplicar beijinhos e beijocas, em esplanadas e discotecas, pelas amigas que lhe repetiam à exaustão que era um querido, fazendo-o retribuir sempre com mais carinhos. Atrevido e um tanto inconsequente, boémio por natureza, de olhar travesso, cabeça rapada, ombros fortes, pele morena e rosto harmonioso deveras atraente, via a sua atenção ferozmente disputada por todas as moçoilas lá da vila.
Não obstante tamanho assédio feminil, o seu coração suspirava por uma camponesa de São Bertinho (aldeia situada nas encostas da Serra Mourisca, a seis quilómetros de Vila Rica) que conhecera numa tarde primaveril do ano anterior, quando conduzia a Harley-Davidson pelas estradas da Serra Mourisca e se espalhara no chão, devido à ousadia da ovelha tresmalhada que fugindo do rebanho atravessou à sua frente numa curva fechada, oculta pela vegetação silvestre, atropelando o motoqueiro. O acidente não foi grave; resultaram somente ligeiros arranhões provocados pelo asfalto e dores no corpo varonil. A fúria de João Carlos, no entanto, mal se ergueu do chão disposto a encarar o dono do rebanho para o destratar, cedeu instantaneamente lugar à magia, ao encanto, à emoção de descobrir aquele anjo de candura que guardava os ovinos. Era uma adolescente de aparência delicada chamada Celina, filha de um casal de camponeses de São Bertinho, que passava os dias na cordilheira a cuidar das ovelhas.
Paixão fulminante, e recíproca: amor à primeira vista! Enamorado por aquela chavala graciosa de rosto angelical, João Carlos trocou rapidamente as animadas tertúlias recheadas de cerveja com amigos nas esplanadas de Vila Rica por escapadelas sorrateiras à aldeia de São Bertinho, em busca de Celina, cujo amor não tardou a conquistar. Os discretos passeios na Serra Mourisca tornaram-se frequentes, já que iniciava um namoro bastante reservado com a formosa pastorinha dos seus sonhos – namorar uma humilde camponesa teria de ser um acto sigiloso, protegido de olhares indiscretos; por essa razão, ocultava a existência de Celina de todo o mundo, não fosse o diabo tecê-las e chegar aos ouvidos do Sr. Horácio Melgaço que o seu único filho perdera-se de amores por uma campónia. Compreendendo o receio fundamentado do amado, Celina aceitou namorar às escondidas, inclusive dos próprios pais.
O tempo foi correndo, recheado de encontros furtivos, maravilhosos, cada vez mais envolventes, ora na cordilheira verdejante resguardados das vistas do povo durante as horas em que Celina alimentava as ovelhas na serra, ora na praia fluvial camuflada por silvados, carvalhos e amieiros, do Rio Luzio que passava rente à aldeia, nas abafadas tardes de Verão, após Celina recolher as ovelhas ao curral depois do pastoreio matinal. Fora nesse recanto encoberto pela Natureza que João Carlos ousou ir mais além, procurando desvendar, seduzir, desnudar o corpinho de Celina e ela, totalmente enlouquecida de amor, dominada pela paixão flamejante que lhe queimava as entranhas, se lhe entregou de alma e coração.
A clandestinidade durou mais de um ano, até ao dia que a imprudência denunciou esse amor secreto com um doce sabor a pecado, qual fruto proibido sempre o mais apetecido. As vastas deslocações do filho do Presidente da Câmara a São Bertinho começaram a dar nas vistas. João Carlos nunca falava com ninguém, esquivava-se a qualquer tentativa de diálogo, mesmo quando entrava na taberna da aldeia para comprar tabaco ou beber uma cerveja. Gerava desconfiança nos aldeões, intrigava a rapaziada, passou a ser vigiado quando o potente motor da Harley-Davidson retumbava nas ruas da aldeia. Naquela tarde desafortunada para os amantes incógnitos, avistou Celina a ajudar os pais numa horta e decidiu parar na taberna. Esperou até vê-la caminhar na direcção do Rio Luzio, terminou a cerveja e rumou ao refúgio secreto, sem perceber que três adolescentes o seguiam de bicicleta. Pouco depois, Celina encontrou-o a mergulhar nas águas do rio. Não suspeitando que os rapazes das bicicletas se haviam escondido numa moita, adentrou descontraída pela vegetação cerrada, arribou ao rio e atirou-se aos braços do amado. Os actos libidinosos que protagonizaram, repletos de erotismo e muita paixão, seriam devidamente testemunhados pelos olhares incrédulos dos espiões embasbacados que não hesitaram em divulgar a pouca-vergonha daquela santinha do pau-oco.
O inusitado burburinho alastrou-se como um rastilho de pólvora pela povoação. Alguns habitantes acreditaram nos adolescentes linguarudos, os mais cépticos duvidavam da veracidade do boato. O rumor chegou rápido a Vila Rica: o filho do Sr. Presidente perdeu-se de amores pela catraia do Joaquim Santos que cria ovelhas em São Bertinho. O todo-poderoso Horácio Melgaço, presidente da Câmara Municipal e dono de uma empresa de produtos alimentares, não tardou a deslindar, por portas e travessas, o secreto romance, ilícito aos seus olhos. Sem hesitar, fez intervir a sua autoridade:
— Essa moça não tem onde cair morta! O pai dela é um pobre diabo que só sabe tosquiar ovelhas.
— Por favor, pai... não seja preconceituoso — implorou João Carlos, tentando apaziguá-lo.
— Afasta-te rapidamente dessa cachopa antes que as coisas assumam proporções maiores.
— A Celina é uma miúda séria, pai! Nunca olhou para outro rapaz e ser pobre não é desonra.
— Ousas desafiar-me, meu palerma? — vociferou o progenitor, enfurecendo-se. — Se continuares envolvido com essa gente pacóvia, não contes comigo para mais nada.
— Pai, por favor, acalme-se... Eu amo a Celina e ela também me ama...
— Se te passa pela cabeça a mais ínfima ideia de casar com essa pobretona, faz de conta que eu morri sem te deixar um vintém furado! Deserdo-te, João Carlos Melgaço!
— Nunca me ocorreu casar. Mas um dia mais tarde... não me importo de subir ao altar com a Celina.
— Ouve, estúpido ignorante: tu ainda não percebeste que és um rapaz inteligente e tens a ventura de ser meu filho? O meu único filho varão! Basta fazeres o curso de Medicina e terás um futuro brilhante. Mas tens de te aplicar nos estudos de uma vez por todas.
— Prometo dedicar-me ao curso se o pai permitir... A Celina é a miúda da minha vida...
— Chega, imbecil! Basta de borgas! Ou partes já para Coimbra ou fecho-te a torneira! E se pretendes mesmo casar, providenciar-te-ei um bom casamento quando concluíres o curso, garanto!
Apesar do arroubo apaixonado, nunca se soube ao certo se João Carlos amava realmente Celina ou se essa paixão arrebatadora era somente um capricho da sua juventude rebelde. Só se sabe que após a intervenção ameaçadora do patriarca, ele sumiu de Vila Rica sem deixar rasto. Julho voou e a Harley-Davidson nunca mais rumou à Serra Mourisca; não tornou a passar por São Bertinho nem a procurar a praia fluvial do Rio Luzio, onde Celina o esperava com um sorriso encantador e o coração a palpitar de esperança e amor, durante as tardes em que ele não aparecia na cordilheira. Na verdade, Horácio Melgaço despachara o filho de armas e bagagens para a casa do seu velho tio Herculano Melgaço, que vivia em Coimbra, em cuja universidade João Carlos ingressara dois anos atrás.

***

O brusco desaparecimento do amado fez Celina sofrer desalmadamente. Derramava lágrimas de sangue porque considerava-se a futura esposa dele; entregara-lhe o corpo e a alma julgando que um dia contrairiam matrimónio. Não obstante as juras de amor, João Carlos nunca lhe falou em casar. Porém, na sua ingenuidade, faltava apenas o pedido oficial para o casamento; mas acreditava cegamente no amor do rapaz. Quando Agosto arribou, o sorriso luminoso já se lhe apagara dos lábios. Os olhos outrora cintilantes tornaram-se doentios. Não se alimentava, vivia angustiada, apática, choramingava pelos cantos. Sentia dores de cabeça, cólicas, náuseas, um cansaço tremendo. Enjoava constantemente, vomitava, desmaiava. Dona Henriqueta, alarmada com o estado da filha, não tardou a reconhecer-lhe os sintomas: gestação! Ao inteirar-se da gravidez de Celina, o pai espumou de raiva, quase a espancou. Exigiu saber quem era o malfeitor que abusara dela, enlameando o nome da sua honrada família.
— Diz logo, desgraçada! Quem foi o bandido que te emprenhou?
Celina revelou o nome, aos soluços. Confessou que se amavam e namoravam há mais de um ano.
— Como há mais de um ano, sua desavergonhada? — gritou o pai, perdendo as estribeiras.
Namoravam escondidos na serra quando pastoreava as ovelhas. Outras vezes no rio. Apavorada, Celina falou tudo; inclusive, que queriam casar, mas João Carlos sumiu de repente. Só então o homem assimilou porque João Carlos visitava tanto a aldeia e deu crédito aos boatos que circulavam no povo.
— Filho da puta! — rosnou Joaquim Santos para a esposa. — Iludiu a nossa filha com promessas de casamento, desonrou-a e abandonou-a. Caralhos me fodam se a brincadeira ficar assim, Henriqueta!
Foi ao quarto trocar de roupa e saiu para a rua. Dona Henriqueta, assustada, correu atrás dele.
— Volta para casa, mulher! Vai cuidar da tua filha que este assunto é para homens!
Chamou um táxi. Vinte minutos depois, achava-se no edifício dos Paços do Concelho. Exigiu falar com o Sr. Melgaço. O motivo era urgente, e particular! De nada valeram os pretextos que a funcionária apresentou: que ele não agendara uma hora, que o Sr. Presidente estava numa reunião e não sabia se...
— Não venha com desculpas da treta, minha senhora! Eu não sou estúpido! Não arredo pé daqui até falar com o Sr. Bagaço! — garantiu Joaquim Santos, sarcástico. — Diga-lhe que sou o Joaquim Santos de São Bertinho, pai de uma miúda menor de idade chamada Celina. Avise também que se o Bagaço não falar comigo, eu prego-lhe um Cagaço! Vou à casa dele procurar o traste do filho, esse pelintra...
A secretária do Presidente associou o nome Celina aos rumores sobre João Carlos e transmitiu ao edil a ameaça que ouviu. Horácio Melgaço mostrou-se desagradado com a impertinência do saloio. Sabia quem era ele. Será que o meu filho deixou algum rasto que o comprometa?, receou. Desta vez, recebeu-o e logo se inteirou da malfadada situação: o filho seduzira e engravidara uma donzela na flor da idade, que fizera recentemente dezasseis anos, e o pai da infeliz viera reclamar responsabilidades. Joaquim Santos reivindicava que João Carlos e Celina casassem rápido antes que a barriga denunciasse a vergonha. O autarca mantinha-se imperturbável, porém, sabia que essa notícia o prejudicaria. Se fosse divulgada, os inimigos políticos usá-la-iam contra si e as consequências do escândalo seriam imprevisíveis. Pretendia recandidatar-se ao terceiro mandado e a fábrica de produtos alimentares já tivera dias melhores – necessitava de manter-se no comando da Câmara Municipal para (poder) reerguer a própria empresa; era imperioso vencer as próximas eleições. Os seus opositores jamais suspeitariam que João Carlos engravidara uma chavalita menor de idade e abandonara-a à própria sorte. Não permitiria que esse escândalo o arruinasse, porém, também não lhe agradava a ideia de casar o filho com uma pastora de ovelhas. Decidiu cortar o mal pela raiz sem quaisquer escrúpulos.
— O meu filho não casará com a sua filha. Ele já não vive em Vila Rica. Viajou para Coimbra e só regressará depois de se formar em Medicina. Mas vamos resolver a situação da melhor forma, sem prejudicar ninguém — declarou com firmeza, estendendo o cheque que acabara de preencher.
— Que é isso? — bufou Joaquim Santos, antevendo a intenção implícita e sub-reptícia do autarca. — Pede-me para... Não, não! De maneira nenhuma! Não vou cometer um pecado desses perante Deus, nem vou para a cadeia. Isso é crime! Sabia, Sr. Bagaço? Posso não ser instruído, mas não sou burro.
— Sim, é verdade! A interrupção voluntária da gravidez ainda não foi despenalizada — reconheceu Horário Melgaço, procurando usar a diplomacia para levar a água ao seu moinho. — No entanto, sei de uma clínica privada em Espanha que tem bons profissionais e oferece excelentes condições. Vou providenciar-lhe o endereço. A sua filha não correrá riscos. Pode acreditar, Sr. Joaquim! Além disso, este cheque cobre todas as despesas da clínica e da viagem, e ainda lhe sobrará dinheiro. Pegue!
O camponês sentia-se indignado. A proposta do Presidente era monstruosa, desumana. Todavia, leu o montante escrito no cheque e arregalou os olhos. Dez mil euros é muita guita! Ciente de que Horácio Melgaço jamais consentiria no casório dos respectivos filhos, tentava raciocinar... Deus me perdoe, mas dá para levar a Celina em segredo a Espanha, fazer o que tem de fazer e voltar para casa sem ninguém desconfiar. O Bagaço tem razão. E sobrará bastante dinheiro... Diante de tão generosa oferta, Joaquim Santos largou a sala do Sr. Presidente com o rabo entre as pernas e o cheque no bolso.
Regressou à aldeia, taciturno. Deglutiu o jantar amordaçado por uma mudez inabitual e calado desabou na cama, esgaravatando na mente o melhor modo de convencer a mulher da necessidade de levarem Celina a Espanha. A esposa estranhou o silêncio, mas não ousou questionar-lhe as decisões no tocante ao futuro da filha. Somente no dia seguinte, enquanto almoçavam, Joaquim Santos revelou:
— O canalha miserável que te emprenhou foi embora. Judiou de ti e partiu de Vila Rica.
— O João Carlos partiu? — inquietou-se Celina, surpresa. — Quando? E para onde, meu pai?
— O Bagaço mandou-o para Coimbra. Só voltará a Vila Rica com o diploma de médico nas mãos.
— Então... ele não vai casar... comigo? Não acredito, meu pai! O João Carlos ama-me...
— Aquele patife gostava era das cambalhotas que deu contigo, minha parvalhona. És tão burra!
— Ai, Joaquim, não fales assim — interveio Dona Henriqueta. — A Celina é ainda uma criança.
— Qual criança, Henriqueta! Vamos mas é resolver a coisa antes que lhe apareça a barriga.
— Que dizes, homem de Deus? — assustou-se a esposa. — Pretendes fazê-la abortar?
— Não, meu pai! — suplicou Celina, apavorando-se. — Por favor, deixe-me ter o meu bebé...
— Cala-te! Quem manda sou eu! Estás prenha e solteira! Queres ficar mais desonrada? Nenhum homem casará com uma rapariga que se refastelou nos braços de outro gajo! Vamos tratar do assunto enquanto é tempo. O povo não sabe da nossa vida, ninguém desconfiará. Iremos a Espanha consertar a tua borrada. Mais tarde, casarás com um rapaz honesto que te saiba respeitar...
Gerou-se uma acesa discussão em torno da refeição, Celina implorando misericórdia até se resignar à intransigência paterna, Dona Henriqueta temendo a ira divina por destruírem o embrião de um novo ser humano, até o homem dar a questão por terminada. Nesse momento, bateram à porta...

***

Belmiro Santos era um homem divorciado de trinta anos de idade, filho do irmão do avô paterno de Joaquim Santos. Retornara há dois anos do estrangeiro, após recuperar-se do grave acidente de trabalho que sofrera e ser generosamente indemnizado. Estabelecido em Mourisca da Beira, o município mais próximo para além da Serra Mourisca, levava uma vida desafogada. Enquanto aguardava que as obras do restaurante que planejava abrir terminassem, auxiliava a sua irmã Carminda no talho que ela geria. Por isso, deslocava-se amiúde a São Bertinho para comprar borregos, coelhos e galinhas ao primo Joaquim. Suspirava de amor por Celina, todavia, o parentesco e a larga diferença de idades inibiam-lhe qualquer iniciativa, mantendo a paixão platónica trancada a sete chaves no coração. Naquela tarde, porém, uma súbita reviravolta renovou-lhe a esperança. Antes de lhes bater à porta, ouviu cada palavra da discussão familiar sobre a gestação de Celina cujo drama lhe trouxe um sorriso aos lábios...
Joaquim recebeu-o com um abraço e Belmiro quis falar-lhe em particular. Então, pediu Celina em casamento. Confessou o sentimento que nutria pela jovem e garantiu que assumiria como seu filho a criança que ela trazia no ventre. Joaquim Santos demorou a refazer-se da surpresa, mas abraçou o genro que lhe caíra do Céu. Entraram na sala e anunciaram a boa-nova. Celina tremeu, porém... João Carlos não dava sinal de vida e agora, sabendo que ele partira para Coimbra sem dela se despedir, sentia-se enganada, profundamente magoada; após tantas juras de amor, não conseguia compreender os motivos da sua rejeição. Por outro lado, ninguém mais sabia que ela engravidara... Belmiro tornou a declarar-se apaixonado, desta vez à própria Celina. Ela hesitava... Unindo-se a Belmiro em matrimónio, qualquer ténue esperança de reencontrar João Carlos dissipar-se-ia por completo; mas também desejava salvar o filho que gerava no ventre. Visto que o pretendente agradava aos seus pais, aceitou. Marcaram o casamento para o início de Setembro e Celina foi-se refazendo da decepção que João Carlos lhe causara à medida que o noivo, um homem ainda charmoso, se bem que menos jovem, menos bonito e menos elegante que o jovem Melgaço, a cortejava seriamente. E Joaquim Santos, satisfeito, fez questão de usar o cheque que recebera com o objectivo de financiar um acto criminoso para pagar a boda da filha.
No mês seguinte, Celina estava casada e partiu com o marido para Mourisca da Beira. Outro mês volvido e Belmiro abriu o restaurante. E dir-se-ia que Celina foi uma boa fada que entrou na vida desse homem porque (ajudando-o) fez o restaurante arrolar-se num maravilhoso período de prosperidade. Belmiro seguia cada passo da gravidez da amada esposa. Quando ela deu à luz, honrou o compromisso de registar o menino como seu filho. Quanto a Celina, superou a desilusão amorosa provocada por João Carlos e aprendeu a amar o marido. Nos anos vindouros, geraram mais duas crianças sadias... O casal amava-se, vivia na mais perfeita harmonia e gozava, sem qualquer ostentação, os seus haveres.
Belmiro Santos era um negociante astuto com alma de cigano e bastaram sete anos para enriquecer. Começou por investir no restaurante; depois comprou o principal albergue da vila e conquistou, num golpe de sorte, uma boa parcela de quotas na fábrica da família Melgaço sediada em Vila Rica. Doravante, o falecimento de Horácio Melgaço possibilitou-lhe adquirir as restantes quotas, tornando-se o único sócio da empresa. Passou a desdobrar-se entre as duas localidades: durante o dia geria a fábrica em Vila Rica; à noite orientava a esposa, seu braço direito, na gestão dos negócios em Mourisca da Beira. Transcorrida uma década após a partida da aldeia de São Bertinho, Celina Santos e o marido eram os empresários mais considerados e lisonjeados... quer em Mourisca da Beira, quer em Vila Rica.

***

João Carlos, após partir para Coimbra, cumpriu a rigor as ordens do progenitor. Jamais olvidou a sua amada pastorinha: sentia saudade da sua candura, do amor dedicado, da entrega incondicional. Ansiava tornar a vê-la na Serra Mourisca, banharem-se juntos no Rio Luzio, amarem-se com paixão na praia fluvial. Todavia, receando que o pai cumprisse a ameaça de o deserdar, não se atrevia a retornar a Vila Rica até que a sua presença fosse requisitada. Dedicou-se ao curso de Medicina e apresentou resultados satisfatórios nos semestres iniciais. Horácio Melgaço, orgulhoso, autorizou-lhe o regresso. Então, João Carlos, ignorando os acontecimentos de São Bertinho, retornou discreto, na sua Harley-Davidson, às estradas da Serra Mourisca. Procurou Celina em todos os lugares, nunca a reencontrou. Espiou a casa dos Santos, nem sinal da amada. Verificou, intrigado, que as ovelhas eram agora pastoreadas pelo Sr. Joaquim e quis indagar o que sucedera. Estaria Celina doente? Os moradores da aldeia observavam-lhe a inquietude, o desespero camuflado. Se buscava alguma informação sobre Celina na taberna, era brindado com risos trocistas. Rapidamente compreendeu que algo grave ocorrera e não sossegou enquanto não descobriu o quê. A revelação foi-lhe desferida como um punhal por Dona Henriqueta:
— A minha filha casou com um grande homem, um senhor de muito respeito!
— Isso não é verdade, Dona Henriqueta — volveu João Carlos. — A Celina não seria capaz...
Desejosa de ver aquele rapaz audacioso pelas costas, Dona Henriqueta entrou em casa e retornou com as fotografias do casamento na mão. Escarrapachou-as na cara atordoada de João Carlos. E receando que ele fosse importunar a filha em Mourisca da Serra, rematou sem piedade:
— Depois do casamento, a Celina e o meu genro partiram... para o estrangeiro!
João Carlos ficou destroçado. A minha querida Celina partiu para o estrangeiro com outro homem? Não pode ser! E tudo por culpa daquele monstro que se diz meu pai... Surgiu em casa alterado, totalmente insano, com ganas de estrangular o pai. Não o viu. A revolta corroía-lhe o âmago. Pegou na mochila, zarpou na Harley-Davidson a toda a velocidade para Coimbra e explodiu a angústia nos braços do tio Herculano. O septuagenário, consternado, tentava reconfortá-lo. Em vão. O pobre rapaz, dizimado pela dor da perda, soluçava num desespero dilacerante. Desorientado, jurou vingar-se.
A partir desse momento, a palavra de ordem era afrontar o todo-poderoso Horácio Melgaço. Largou o curso e deixou-se enveredar por submundos menos lícitos, até chafurdar na podridão. Não tardou a livrar-se do pai tirano que o sufocava: Horário Melgaço faleceu logo após vencer o terceiro mandato na Câmara, vitimado por um enfarte fulminante. Legou-lhe a empresa endividada e a vivenda hipotecada. Não obstante, João Carlos herdou uma razoável fortuna em dinheiro. Abandonou definitivamente a universidade e converteu-se num libertino. Passou a viajar, ocupando o tempo em casinos. Quando não se divertia nos casinos, entretinha-se em motéis, cabarets e bares de alterne, coleccionando aventuras amorosas que nada significavam para si: mulheres de qualquer idade, raça, nível social ou estado civil. Desfrutou de todas, mas não amou uma única, e nenhuma decerto o amou; nisso, ficavam empatados. Tinha em mente apenas o prazer imediato e pouco duradouro das orgias desregradas, e por não ser duradouro é que era prazenteiro, portanto urgia prolongá-lo em loucas noitadas, festas e motéis.
Após a morte de Horácio, Herculano Melgaço rumou a Vila Rica, para administrar os bens que João Carlos herdara. Embora benevolente, o ancião via no sobrinho somente um bon-vivant... o playboy inconsequente que jamais se interessaria por coisas enfadonhas como um escritório, uma sala de reuniões, as minúcias de um contrato. Assumindo a gerência da empresa, cuidava-lhe de tudo; todavia, arcaboiço não teve para salvar a fábrica de uma iminente falência. Obtendo o aval do sobrinho, vendeu ao sócio minoritário as quotas que possuíam, liquidou as dívidas e destinou o restante dinheiro ao herdeiro. Não conseguiu, igualmente, resgatar a vivenda penhorada. Isso pouco importou a João Carlos: desde que tivesse dinheiro estava tudo bem. E assim, o seu património foi sendo delapidado. Contudo, não se inquietou enquanto o tio viveu. Mas como a velhice o conduzisse à morte, mais cedo ou mais tarde... a bancarrota do rapaz começou a partir do dia em que o tio Herculano foi sepultado.
Quando a situação financeira lhe ruiu por completo, João Carlos tinha trinta e dois anos, mas parecia um quarentão. Adoecera e envelhecera demasiado. Já sentia o corpo dilacerado pelas moléstias e após ver as suas finanças arruinadas pelo desregramento conheceria o amargo sabor da miséria. Deu consigo na triste condição de homem destruído que fizera da sua vida um evento contínuo de futilidades; depois de ter vivido à grande e à francesa, nada lhe sobrou. O balanço final que efectuou mostrava apenas o ilusório, o vazio da sua existência: um presente sem futuro e o passado cinzento, opaco, sem brilho nem qualquer importância, sobretudo sem alegria. Não obstante a desgraça que o vitimara, João Carlos mantinha nas suas recordações algo doce cuja memória rebrilhava como um diamante, e isso bastava para que ele não tivesse desperdiçado totalmente a vida: a sua amada Celina que jamais olvidou.

***

Naquele ano de eleições autárquicas, Novembro chegou faustosamente assombroso. Ventos gélidos em dias de Outono apresentavam-se mais glaciais do que no Pólo Norte, fazendo as peles expostas dos candidatos queimarem de frio e os cachecóis esvoaçarem de forma medonha. Celina acompanhava o marido nas campanhas eleitorais de Mourisca da Beira, depois enfurnava-se no seu palacete, envolta em cobertas de lã ao redor da lareira e não raras vezes fustigada por pensamentos impertinentes. Neste sábado, o Telejornal noticiava um acidente nos arredores de Mourisca da Beira. Um camião que transportava uma carga inflamável despistou-se num cruzamento e embatera num edifício gerando o caos: explosões medonhas provocavam chamas gigantes, labaredas esvoaçantes ameaçavam lamber casas contíguas e as viaturas eram forçadas a parar. Incomodada, Celina desviou os olhos do televisor. Foi até uma janela e fitou a rua sossegada. Chamas inquietas bailavam à sua frente num barulho ensurdecedor cujas espessas fumaças enegreciam o céu; pensamentos tortuosos e imagens alaranjadas eram inoculadas na sua mente através daquele estranho cheiro algo familiar. Um espectro desfigurado, fantasmagórico, repleto de fuligem surgia das entranhas do incêndio; apontava enormes e pavorosas unhas negras, implorando piedade. «Meu Deus!», gritou Celina, aterrorizada. O marido perguntou o que se passava. Ela só repetia «Meu Deus, Belmiro! Temos de o salvar». Ele correu para a esposa, inquirindo de novo o que ocorrera. «O fogo! As chamas! Aquele homem!», balbuciava Celina, paralisada. Belmiro observou a rua tranquila, nada vislumbrou. Abraçou a mulher e ela despertou do devaneio, estremecendo e sacudindo a cabeça. Súbito e estranhamente, o cheiro sumira, o nevoeiro dissipara, as chamas infernais evaporaram. Olhou de novo para a rua: automóveis estacionados nas bermas e os prédios da frente mantinham-se intactos. Apontando para o outro lado da rua, murmurou:
— Desculpa, Belmiro, foi só uma impressão. Um pressentimento ruim. Estas casas da frente eram engolidas por um mar de chamas e alguém implorava a minha ajuda.
— Quem era? — quis saber Belmiro enquanto ela divisava, lá mais adiante, um vulto maltrapilho.
— Não consegui reconhecer, mas era uma imagem familiar, bastante real.
— Ficaste impressionada com as notícias que vimos na televisão.
— Não, Belmiro! Foi uma visão muito nítida, talvez uma premonição...
Voltaram para o sofá. Pouco depois, ouviram uma zaragata na rua, que atraiu Celina novamente à janela. O marido acompanhou-a. Lá fora, o maltrapilho indistinto que vira minutos antes a cambalear no fundo da rua, achava-se agora em frente à sua casa. Cambaleando, de garrafa na mão, era alvo de chacota de três adolescentes mal-educados que escarneciam da sua desgraça.
— Meu Deus! O Filipe está a bater no pai! — gritou Celina, horrorizada, revendo, estupefacta, nesse maltrapilho sujo e esfarrapado o vulto que visualizara nas chamas a implorar ajuda. — Que educação é essa, Filipe? Deixa esse homem em paz! Vem já para casa! E vós também, ide para as vossas casas!
— Que disseste, Celina? — inquiriu Belmiro enquanto ela ralhava com os adolescentes na rua.
— Aquele homem... aquele infeliz... aquele pobre coitado... é o pai do Filipe. — Mais do que um vulto indistinto, Celina reconheceu, surpresa, que aquele desgraçado era o amor da sua juventude, que partira há quinze anos de Vila Rica sem deixar rasto após plantar-lhe a semente de Filipe no ventre.
— Que dizes, mulher? O pai do Filipe sou eu! — retorquiu Belmiro, sem entendê-la. Vendo-a tão comovida, suspeitou que Celina conhecesse o pobre diabo e interrogou: — Quem é esse mendigo?
Ainda transtornada por ter visto o filho a bater no próprio pai, Celina continuava a fitar João Carlos, que seguia tropeçando rua fora e caiu lá mais adiante, junto ao portão aberto de uma garagem. Não lhe fazia sentido como é que ele se deixara degradar tanto. E como foi parar a Mourisca da Beira naquele estado miserável? Que desgraça lhe teria sucedido? Virou-se para o marido, de lágrimas nos olhos.
— Aquele homem, Belmiro... é o João Carlos — balbuciou, emocionada. — É o homem que fugiu de mim há quinze anos, deixando-me grávida, sem nunca dar a menor satisfação.
— O Filipe é meu filho! O meu primogénito! Desde o dia em que casámos! — frisou Belmiro.
— Bem sei, Belmiro. E tu sempre foste um bom pai para ele, nunca o diferenciaste dos outros filhos. Só quis dizer que o João Carlos é o pai biológico, o homem que o gerou. Antes de casarmos, sabias que eu tinha sido namorada de um miserável que fugiu de mim para obedecer uma intimação do pai...
— Sei perfeitamente quem é. João Carlos Melgaço, filho de Horácio Melgaço, meu antigo sócio.
— Ele mesmo. E agora está ali, derreado naquele portão, dormindo ao relento...
— Pois olha, minha querida — sussurrou Belmiro. — Tens agora uma boa ocasião de te vingares.
— Quê?! Queres tu melhor vingança do que esse estado miserável a que ele foi reduzido?
— Certamente que pretendo algo melhor, Celina. E, se me dás licença, agirei por ti.
— Faz o que quiseres, Belmiro. Mas, por favor... não lhe faças mal. Já basta a sua desgraça.
— Muito pelo contrário, Celina! — exclamou o marido, enigmático, saindo para a rua.

***

No dia seguinte, quando João Carlos despertou, achava-se comodamente deitado numa cama limpa e tinha diante de si um indivíduo desconhecido. Era Mário, um homem de confiança de Belmiro Santos.
— Onde estou eu? Que casa é esta? — resmungou João Carlos, desnorteado. — Quem é você?
— Não se importe comigo — volveu Mário, sorrindo. — Levante-se e vá tomar um duche.
João Carlos, estupefacto, não compreendia o que lhe sucedia. Deixou-se levar como uma criança para a casa de banho. Tomou banho, vestiu roupas novas, foi submetido à tesoura e à navalha de um barbeiro e almoçou como um príncipe. Após tudo isso, Mário levou-o para a empresa de produtos alimentares que outrora lhe pertencera, em Vila Rica, onde ficou empregado por ordem de Belmiro. Antes de se retirar para as suas funções, porém, Mário deu-lhe algum dinheiro e avisou:
— O Sr. João Carlos Melgaço fica empregado nesta fábrica até ao dia em que torne a beber. E pode morar no nosso apartamento por algum tempo, até criar condições de arranjar um poiso para si.
— Mas a quem devo eu tantos benefícios? — quis saber João Carlos, profundamente intrigado.
— A uma pessoa que se compadeceu do Sr. João Carlos Melgaço e deseja manter-se incógnita.
João Carlos atribuiu a sua sorte a algum velho amigo do seu pai. Parou de beber álcool, meteu juízo na cabeça, agarrou a nova oportunidade com unhas e dentes, não é mau funcionário e há-de morrer sem nunca ter sabido que a sua regeneração foi a vingança de Celina, o amor que abandonara na juventude.



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in «Ei-los Que Partem!», páginas 118-131
Papel D'Arroz Editora, Junho 2015

8 comentários:

  1. Esta publicação tira todo o interesse em comprar o livro ...Mas a minha opinião vale o que vale....Gostei de ler tem bom dialogo ..

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    1. Grato pelas suas palavras, Maria Silva. O livro «Ei-los Que Partem!» é uma colectânea que resultou de um concurso literário e foi publicado no início de Junho. Reúne 64 textos diferentes, entre grandes e pequenas histórias e também alguns poemas (de 64 autores); são quase 300 páginas! Não creio que a publicação da minha história neste blogue retire o interesse em comprar o livro. Pelo contrário: motivará a querer ler também os outros textos. Além disso, antes da publicação em livro, este conto esteve (e continua) publicado no blogue da editora. Fico contente que o tenha apreciado!

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  2. Isidro comecei a ler Celina e só parei no fim, não é normal acredita... Parabéns, adoro a forma como ironizas e brincas com os dissabores da vida... uma bonita lição... retribuir fazendo o bem, independentemente de o terem feito connosco!

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  3. Um excelente texto que peca apenas na mistura de uma linguagem mais erudita com a linguagem curriqueira do dia a dia, sendo que este pecado acaba por lhe conferir uma fluidez e até mesmo criar uma relação antagónica entre as diferentes personagens. Um texto magnifico que aborda os temas da partida e do abandono de forma subtil mas bem explicada. Continua com o extraordinário trabalho Isidro pois sem dúvida que vale a pena.

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  4. Belo texto, Isidro. A sua característica de optar pela descrição excessiva favorece a criação do "tempo e espaço" da trama por parte do leitor. Cada detalhe e cada personificação é abordada de forma harmoniosa com o contexto. A finalização, assim como na vida, nem sempre é a que esperamos. Parabéns.

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  5. Adorei o texto, prende o leitor à escrita! Parabéns.

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  6. Tenho de te confessar, o Dilema de Celina remonta-nos às aldeias mais recônditas de Portugal, que eu acredito, na realidade (ainda hoje em dia) se passem assim, claro que através da tua escrita, nós os leitores, vivemos aquele dilema como se estivéssemos presentes lá na tasca do sítio. Parabéns amigo ;))))

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  7. Adorei Isidro, achei o máximo. Muito bem escrito e com alguma imaginação sua saiu este belo conto. Parabéns. Ex colega de trabalho. Ana Torres

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